Andrés Bello, o Humanista da América (2ª parte)

por Leonardo Santelices A.

Em 1824 o Governo do Chile nomeia Mariano Egaña como ministro plenipotenciário na Inglaterra. Ele não tinha uma boa relação com Antonio José de Irisarri, guatemalteco, ministro do Chile em Londres, pois havia nomeado Andrés Bello como secretário interino da legião, em 1822. A princípio esta situação o afeta, mas depois é estabelecida uma boa relação com Mariano Egaña, que tinha entre suas missões contratar professores, industriais e fomentar a imigração até o Chile. Um desses contratados será Andrés Bello.

Chile na época de Bello

Desde a renúncia de Don Bernardo O´Higgins em Janeiro de 1823 até o advento de um regime autoritário em 1930, o Chile passou por um período chamado por alguns historiadores como período de Anarquia e ensaios políticos.

Esta é uma época de grande inovação e criatividade, na qual se buscava uma nova organização política para recomeçar o que se manteve durante todo a época colonial sob o domínio Espanhol.

Em 17 de abril de 1830 teve lugar a batalha de Lircay com a vitória dos conservadores. Começa o período chamado República Autoritária. Encontramos em um parágrafo escrito por um de seus mais influentes protagonistas, Diego Portales, algumas idéias que prevalecem nesta época:

“A Democracia que tanto pregam os iludidos, é um absurdo nos países como os americanos, cheios de vícios e onde os cidadãos carecem de toda virtude, fator que é necessário para estabelecer uma verdadeira República. A Monarquia não é tampouco o Ideal americano: saímos de uma terrível para voltar a outra e o que ganhamos? A República é o sistema que há que adotar, mas sabe como eu a entendo para estes países? Um governo forte, centralizador cujos homens sejam verdadeiros modelos de virtude e patriotismo, e assim guiem os cidadãos pelo caminho da ordem e das virtudes. Quando se houver moralizado, poderá vir o governo completamente liberal, livre e cheio de Ideais, onde tenham parte todos os cidadãos.”

A chegada de Andrés Bello ao Chile

Ele parte de Londres em 14 de fevereiro de 1829, e chega a Valparaíso em 25 de junho, a bordo do navio Inglês Grecian, com a idade de 47 anos e em companhia de sua família. Neste Chile que começava uma nova etapa de sua história, é onde Andrés Bello se tornará um protagonista importante deste processo, aportando no jurídico, educacional, político e literário.

Em 13 de julho de 1829, o presidente Francisco Antonio Pinto nomeia Bello como oficial maior do Ministério da Fazenda, com um salário de dois mil pesos anuais. Ele não exerceu este ministério, mas sim o de Relações Exteriores, ocupando o cargo que corresponderia hoje ao de subsecretário.

Em 1830 se inicia no Chile o chamado Regime Portaliano, que compreende, durante a vida de Bello, os governos de Prieto, Bulnes, Montt e Pérez, também chamados “dos decênios”. São nestes anos que se consolida uma organização institucional, se experimenta um renascimento cultural, e se vive, ao final desta época, um avanço econômico. Mas o aspecto mais destacável é a estabilização institucional, é o período onde se dá forma ao devir Republicano. Trata-se de um período de construção nacional, em que o Chile se integra e se consolida como uma unidade política, onde das necessidades materiais mais básicas se erguem às necessidades intelectuais e científicas; onde se busca construir um Estado que se projeta ao futuro consolidando o processo de independência.

Em 1830 é nomeado Reitor do Colégio de Santiago, e neste mesmo ano é fundado o periódico oficial “O Araucano”. Bello foi encarregado da redação das seções estrangeira e cultural e foi o principal redator até 1853. Para a nascente República era fundamental contar com um periódico oficial que expressasse a maturidade intelectual e política alcançada, daí a relevância do trabalho de Andrés Bello.

Como humanista Andrés Bello se depara com uma triste herança da época da Colônia: a censura de livros. Para poder publicar livros tinha que solicitar autorização às autoridades eclesiásticas que eram regidas pelo índice elaborado pela Inquisição. Enraivecido, Andrés Bello reclamou desta situação em “O Araucano”, de maneira particular pela apreensão de alguns livros na Aduana, argumentando o direito contra as arbitrariedades daqueles que se sentem possuidores da verdade.

Em 1832 é nomeado membro da Junta de Educação e em 15 de outubro, como resultado de sua brilhante, importante e transcendental contribuição nos variados campos, no congresso do Chile, ele é naturalizado chileno, com a plenitude de direitos de um cidadão chileno.

Em 1834, passa a desempenhar o cargo Maior do Ministério de Relações Exteriores, posto que ocupará até 1852.

Em 1837 é eleito Senador da República e reeleito em dois períodos sucessivos, até o ano anterior ao de sua morte. No exercício parlamentar aportou com sua visão muito bem informada sobre as necessidades do país em todos os seus âmbitos e seus sólidos fundamentos humanistas.

Andrés Bello o Jurista

Em 1831 começa sua atividade como professor particular em sua própria casa e em 1832 publica em Santiago “Princípios de Direito Humano”,que em uma versão corrigida e aumentada se transformará em 1944 nos “Princípios de Direito Internacional”, publicada em O Mercúrio e impressa em Valparaiso. Neste livro já se encontram os conceitos relativos a proteção de uma zona marítima exclusiva. Tendo como base estes conceitos, o Chile foi o primeiro país do mundo a proclamar, em 1947, sua soberania e jurisdição sobre uma zona marítima de 200 milhas, que se projeta até o Oceano Pacífico. Posteriormente, estes mesmos conceitos deram origem a Comissão Permanente do Pacífico Sul.

A obra de Bello se adianta a sua época e contém claras indicações sobre o direito marítimo, em alguns parágrafos podemos apreciar sua perspectiva:

“Como meio de segurança, basta o domínio daquela pequena porção de mar adjacente, que não pode ser de todo livre, sem que este uso comum nos incomode a cada passo, e que possamos apropriar, sem fazer inseguro o território dos demais povos e embaraçar sua navegação e comércio.”

E sua visão do mar como uma fonte de recursos que devem ser protegidos, visão de mais de 170 anos, tem uma atualidade assombrosa:

“Mas, sobre outro aspecto, o mar é semelhante a terra. Há muitas produções marinhas que se encontram limitadas a certos locais: porque assim como as terras não dão todas os mesmos frutos, tampouco todos os mares fornecem os mesmos produtos. O coral, as pérolas, o âmbar, as baleias não se encontram senão em limitadas porções do oceano, que se empobrecem diariamente e ao fim se esgotam. As baleias freqüentavam em outro tempo o Golfo de Vizcaya; hoje em dia devem ser perseguidas até as costas da Groelândia e de Spitzberg; e por maior que seja em outras espécies a fecundidade da natureza, não se pode duvidar que a concorrência de muitos povos faria mais difícil e menos lucrativa sua pesca e acabaria por extingui-las, ou ao menos eliminá-las de uns mares a outros. Não sendo, pois, inesgotáveis, parece que seria lícito a um povo apropriar-se dos locais em que se encontram e que não estejam atualmente possuídos por outros”.

Outro do imenso aporte de Andrés Bello foi a preparação do código Civil do Chile, e sobre ele comenta o professor Luis Riveros, Reitor da Universidade do Chile:

Nos modernos Estados europeus se havia demonstrado os benefícios da codificação, que gerava corpos de leis coerentes, preparados de forma racional e sistemática, por sobre o Direito comum, vago e cheio de normas contraditórias.

Partidário desta modernização, Andrés Bello sustenta a idéia de respeitar as peculiaridades do direito vigente, ordenando-o com técnicas de codificação. Iniciou este árduo trabalho em 1840. O Código foi publicado em 31 de maio de 1856 e entrou em vigência em 1857. Por sua clareza, exatidão e coerência, foi fácil de aplicar. Assim mesmo, foi adotado em diferentes países hispano-americanos. Equador e Colômbia o promulgaram com muito poucas modificações e serviu de fonte para os códigos de outras nações do continente.

No Projeto do Código Civil, publicado em O Araucano em 1841, Andrés Bello disse: Nos encontramos incorporados em uma grande associação de povos,cuja civilização é um resplendor a nossa. A independência que temos adquirido nos tem posto em contato imediato com as nações mais adiantadas e cultas; nações ricas de conhecimentos, de que podemos participar, basta querermos. Todo o povo que tem representado antes de nós no palco do mundo tem trabalhado para nós.

Andrés Bello e a Universidade do Chile

Em 1842 o projeto da lei orgânica da Universidade do Chile foi aprovado pelo Conselho de Estado e remetido ao poder legislativo, a Universidade seria inaugurada em 1843 e Andrés Bello foi seu Reitor honorífico. Dada a sua importância, hoje a Universidade do Chile é também conhecida como a Casa de Bello.

A noção do que deveria ser a Universidade é expressa por Bello no periódico O Araucano, nos seguintes termos que, todavia conserva toda sua vigência:

“Não se trata daqueles estabelecimentos escolásticos ou de ciências especulativas, destinados principalmente a fomentar a vaidade dos que desejam um título aparente de suficiência, sem vantagens reais ou imediatas para a sociedade atual… Se deseja satisfazer, em primeiro lugar, uma das necessidades que mais se tem sentido desde que com nossa emancipação política pôde abrir a porta aos conhecimentos úteis, lançando as bases de um plano geral que abrace estes conhecimentos, enquanto alcancem nossas circunstâncias, para prolongá-los com fruto em todo o país e conservar e adiantar seu ensinamento de um modo fixo e sistemático, que permita, sem embargo, a adoção progressiva dos novos métodos e dos sucessivos avanços que façam as ciências”.

Junto com a promulgação da Lei Orgânica da Universidade do Chile, como parte deste pequeno renascimento, se funda a Escola Normal de Preceptores para a formação de professores primários e a Escola de Artes e Ofícios. Este impulso e o trabalho de Bello na Universidade do Chile foi o que se refletiu na maturidade e qualidade que teve a educação chilena no final do século XIX e início do século XX.

Na apresentação atual da Universidade do Chile se pode ler: Desde o começo a Universidade do Chile se define como garantia da cultura clássica, humanista e secular. Esta é sem dúvida a estampa de seu primeiro reitor, Dom Andrés Bello, para quem o saber é uma questão social, intimamente ligada ao progresso material e cultural de uma nação. Como dizia o sábio venezuelano: “todas as verdades se tocam – na área do conhecimento – se chamam umas as outras, se encadeiam, se empurram”. Bello associava a Universidade com as necessidades nacionais: “Todas as sendas em que se propõe dirigir as investigações de seus membros, o estudo de seus alunos, convergem em um centro: a pátria” [1]. Às portas da revolução industrial, cujos ecos começavam a serem ouvidos desde a Europa, e em pleno apogeu das idéias liberais, a Universidade devia estar a serviço do país. Como uma nova instituição educacional, devia desprender-se de velhas práticas e tradições, assim como da submissão a algum credo determinado ou a idéias absolutas, em respeito as quais a nova Universidade começaria a refletir.

A Gramática para o Americanos

No mês de abril de 1847 é publicada a primeira edição da gramática Castelhana destinada ao uso dos americanos. No prólogo da obra Amado Alonso a descreve nestes termos: A Gramática da língua castelhana de Andrés Bello, escrita há mais de um século, segue hoje sendo a melhor gramática que temos da língua espanhola. Este é um feito que mostra justamente a nossa admiração. Tem-se progredido na análise e conhecimento de muitos materiais idiomáticos; se tem posto mais rigor (ainda que as gramáticas escolares não tenham chegado a isso) na interpretação das categorias gramaticais; mas, todavia não tem aparecido um livro, uma gramática, que possa substituir com proveito a obra magistral de Andrés Bello em seu duplo ofício de repertório de modos de falar e de corpo de doutrina.

Bello escreve a Gramática para os americanos: Não tenho a pretensão de escrever para os castelhanos. Minhas lições se dirigem aos meus irmãos, os habitantes de Hispano-América. Julgo importante a conservação da língua de nossos pais em sua possível pureza, como um meio providencial de comunicação e um vínculo de fraternidade entre as várias nações de origem espanhola derramadas sobre os dois continentes. Andrés Bello – Prólogo.

O Humanista vê que a dispersão do idioma entranha um grave perigo: Mas o maior mal é aquele que se não se detém nos priva das inapreciáveis vantagens de uma linguagem comum, é a avenida dos neologismos de construção, que inunda e distorce muito do que se escreve na América, e alterando a estrutura do idioma, tende a convertê-lo em uma multidão de dialetos irregulares, licenciosos, bárbaros; embriões de idiomas futuros, que durante uma longa elaboração reproduziram na América o que foi a Europa no tenebroso período da corrupção do latim.

Por isso ele escreve a Gramática para preservar o idioma, não deteriorar este magistral instrumento que permite às novas repúblicas anuir às ciências, as artes, o direito, em síntese as humanidades, a aquilo que nos leva a exercer nossa condição de seres humanos. Chile, Perú, Argentina, México, falariam cada um sua língua, ou melhor dizendo, várias línguas, como acontece na Espanha, Itália e França, onde dominam certos idiomas provinciais, mas vivem a seu lado vários outros, opondo dificuldades a execução das leis, a administração do Estado, a unidade nacional. Uma língua é como um corpo vivente: sua vitalidade não consiste na constante identidade de elementos, e sim na regular uniformidade das funções que estes exercem, e de que procedem a forma e a índole que distinguem ao todo.

Esta condição de seres humanos se expressa com maior propriedade na linguagem, daí a importância de preservar a pureza idiomática, mas aceitando que é algo vivo e suscetível a modificações e agregados: Sendo grande ou não o perigo, ele tem sido o principal motivo que me induziu a compor esta obra, sob razões superiores a minhas forças. Os leitores inteligentes que me honrem lendo-a com alguma atenção, verão o cuidado que tenho em demarcar, por assim dizer, os limites que respeitam o bom uso de nossa língua, no meio da dissolução e liberdade de suas rotações, assinalando as corrupções que se propagam hoje em dia, e manifestando a essencial diferença que existe entre as construções.

Andrés Bello, e sua visão da América

Na cultura atual se tem imposto um falso antagonismo entre a especialização e uma visão geral. Porém, sempre existiu a especialização nos ofícios. Neste sentido, uma pessoa não pode ser especialista em mais de alguns ofícios, salvo as exceções. Contudo, se uma pessoa possui uma especialização, isto não a impede de ter uma visão global, universal, um critério que permita ir incorporando novos conhecimentos: A noção de Universidade é precisamente aquela de formar pessoas com uma visão universal que lhes permita integrar-se de forma harmônica à sociedade e à natureza. O contrário, que é o que encontramos em demasia na atualidade, são pessoas especializadas em uma área específica e que quer ver toda a realidade social e natural desde essa única e excludente perspectiva. Assim temos chegado, por exemplo, a conceber o ser humano como um animal, a sociedade como um mercado, a natureza como uma simples fonte de recursos, e os resultados destas visões parciais estão se tornando cada vez mais evidente.

Uma das características de Andrés Bello foi esta visão global que tinha como principal preocupação, consolidar o feito político da emancipação das novas repúblicas americanas na conformação de Repúblicas completas com um adequado desenvolvimento cultural, e por isso se preocupou com a difusão das ciências, das artes e da cultura em geral. Fomentar a sã convivência social através do Direito. Fazer uso cabal da linguagem como meio de comunicação e desenvolvimento dos seres humanos. Todo esse fecundo trabalho levou Francisco Bilbao a dizer que Andrés Bello foi “a árvore majestosa transplantada na zona tórrida do Chile” e sintetiza naquilo que é a base fundamental de desenvolvimento das pessoas e dos povos: a Educação, e, mais além de suas múltiplas atividades, Andrés Bello foi sempre um educador.

Andrés Bello morreu em Santiago do Chile em 15 de Outubro de 1865 há mais de 140 anos. Hoje vivemos uma alienação econômica e cremos que o destino da sociedade é o desenvolvimento, e estamos dispostos a pagar um custo social pelo crescimento da economia, mas nunca um custo econômico pelo crescimento da sociedade. Hoje que cremos que a política é a disputa entre interesses mesquinhos e partidários. Hoje vivemos em uma sociedade imediatista onde os meios justificam a difusão da sujeira e a linguagem inculta sobre a cômoda desculpa dos níveis de audiência. Hoje, os ensinamentos e fecundo trabalho de Andrés Bello cobram grande atualidade e vigência para recuperar um verdadeiro desenvolvimento para um país, isto é, a convivência civilizada entre seres humanos que o são por suas virtudes e não por suas ambições ou temores.

Esta antiga terra da América que abrigou grandes civilizações, que está cruzada pela Cordilheira dos Andes e franqueada pelos Oceanos Pacífico e Atlântico, que limita ao sul com a Antártica e que tem em seu coração esse pulmão do planeta que é a selva amazônica, até agora não tem podido encontrar seu rumo histórico e suas próprias vias de desenvolvimento, por isso temos passado de países em vias de desenvolvimento a países de terceiro mundo, quer dizer, cidadãos de terceira classe, por aí é claro que nunca chegaremos. Todavia, se voltamos nossa visão a este ideal que perseguia Andrés Bello e outros humanistas de sua época, que compreenderam que fazer uma verdadeira República e alcançar uma real emancipação é possível pelo caminho da cultura e educação, poderemos encontrar novos caminhos mais próprios e, sobretudo, mais humanos. Não basta construir edifícios, há que elevar a consciência; não é suficiente construir estradas, há que estabelecer vias de sã convivência na sociedade; não basta prosperar economicamente, há que fazer pessoas melhores, mais criativas e mais felizes.