Vou lhes contar um conto daqueles marcantes.
Que só a intuição nos permite criar.
E não se assuste de pronto, se no meio do conto,
uma força de dentro te fizer lembrar.
Que tens alma de arcanjo.
Forjada no arranjo
de estelares rondas a te lapidar.
Vou lhes contar um conto daqueles marcantes.
Que só a intuição nos permite sonhar.
E verás que acertei em cheio,
quando sentires em ti os mesmos anseios
do jovem, João do meio, nosso personagem singular.
E antes que vocês me tomem
de, por demais, convencido.
Encerro a poesia aqui e ao conto lhes convido.
Invocando corações de criança,
olhos e ouvidos.
João do meio
Não sei se foi por maldade ou simples ironia do destino, mas os fatos andavam empurrando João para o meio. Na escola, se o critério para entrar na sala de aula fosse altura, lá estava João no meio da fila. Quando a questão era “bullying”, João era meio lembrado, meio esquecido. Quanto ao relacionamento com os colegas, meio tímido, mas não de todo acanhado. No que se referia às notas nas provas, “meia boca”. E se o assunto fosse jogar uma “pelada”, não era o último a ser escolhido, mas também não era o primeiro. Quanto à classe social, não saberia dizer a qual pertencia, embora lembrasse com certo pesar a resposta do seu pai ao lhe pedir uma bicicleta de presente: “o dinheiro não falta, mas também não sobra, João”.
De todos os meios, havia “um” que João até gostava. Era o “meio da chamada”. João agradecia internamente aos seus pais por terem escolhido esse nome meio batido, cuja letra “J” o colocara afastado das pontas nas listas de chamada. João percebera que as pontas das listas eram os nomes preferidos pelos professores para iniciar a sabatina nas sádicas provas orais.
“Diante de tantos meios, a mediocridade rondava o menino.
Seria João produto do meio ou João traçaria seu próprio destino?”
Apesar de tantos meios, sua mãe o amava por inteiro, e embora esse amor não fosse capaz de explicar os mistérios da vida que lhe aplacavam o coração, ao menos era um amor quente que o confortava. Talvez, por isso, João sempre lembrara com certo humor um cochichar de sua mãe a seu pai, numa noite em que João fingia dormir:
– João anda meio esquisito, amor. Fica a brincar com seus supostos amigos da floresta. Ele diz que são duendes, elfos, sei lá mais o quê… Esses dias, contou-me com detalhes sobre seu amigo “Curupira”. Disse que este costuma surfar dentro de pequenos redemoinhos que se formam junto às folhas secas da relva.
– Não é o Curupira, mãe! – pensou João, que já se acostumava com a ignorância perene dos adultos. — É o Saci que surfa redemoinhos encantados. — E ainda fingindo dormir, mas com ar de professor, continuava a sua aula imaginaria: — Uma maneira fácil de diferenciar o Saci do Curupira, mamãe, é contar-lhes as pernas! Se tiver uma só, sem dúvida é o Saci. Se tiver duas e pés invertidos, com certeza é meu amigo Curupira. Oh, turma danada — encerrava João.
Certa tarde, de olhos atentos, João observava dois pequenos gatinhos comprometidos em uma tocaia minuciosa, dispostos a engalfinhar um pássaro distraído que se aproximava sem nada suspeitar. Mais adiante, próximo da amistosa “floresta mágica”, pequeno bosque em frente a sua casa que João tanto gostava, estava a gata mãe a mirar os filhotes a uma distância segura, aparentando despreocupação, mas evidenciando comprometimento no seu papel de protetora e mestra da caça. João, que observava tudo de longe, se perguntava:
— Como gatos podem saber tanto se não vão à escola? Papai uma vez me falou que os animais agem segundo sua natureza, mas ele não soube me dizer quem ensinou essa natureza a eles. Mamãe disse que os animais não pensam. Eu mesmo, não tenho certeza. — Nesse momento, um dos gatos pulou e apanhou o pequeno pássaro. Então João pensou: — Bem, talvez mamãe tivesse razão em relação aos pássaros.
Numa bela manhã de verão, ao chegar à sala de aula, João notara, intrigado, que a mariposa de asas amarronzadas e pontos dourados permanecia ali na parede há dois dias sem se mexer, ao lado direito do quadro-negro. No primeiro dia, João chamara a atenção da sala para a admirável mariposa, o que rendeu até uma aula de ciências sobre o assunto. Gentilmente, a professora Gabi explicara a diferença entre borboleta e mariposa, dizendo que esta tinha uma vida noturna mais ativa e que, em média, vivia apenas 48 horas após sair do casulo. Então, João refletira:
— Hoje esta mariposa morrerá. E ela escolheu viver toda sua vida nesta parede. Por algum motivo ela me lembra meu tio Joaquim, que nunca sai de casa, sempre a reclamar do governo — João teve vontade de rir ao imaginar seu tio Joaquim com a cara na parede, fingindo ser uma mariposa, mas também se sentiu triste ao imaginar a morte de seu tio em uma parede dura e gelada. — Talvez os homens não devessem imitar uma mariposa— disse João. — Talvez a mariposa tivesse natureza de mariposa e os gatos, natureza de gatos. E se o homem não tivesse natureza de gato e nem de mariposa, qual seria a natureza do homem?
Numa manhã de outono, João conhecera um cachorro de rua que se aventurara por sua floresta. Os olhares de ambos se cruzaram e João, sem entender, sentira uma paz muito profunda. O cachorro tinha olhos contemplativos e ouvidos atentos. Seus movimentos rápidos, mas contidos, davam um ar de guerreiro sem, contudo, perder o semblante de bom amigo. O belo cachorro se aproximara respeitoso, como que reconhecesse em João um nobre guerreiro de mesma estirpe e, por isso, lhe concedera a honra de ser acariciado. Então João refletira:
— Por que esse cachorro me parece tão sábio e feliz? Deve ser um cachorro que vive segundo sua natureza. Será́ que a verdadeira paz envolve apenas os olhos daqueles que vivem segundo a sua própria natureza?
Foi então que João percebera que ainda não havia visto um homem com “olhos de paz”. Costumava ver olhos de alegria no seu pai quando seu time ganhava. Mas “olhos de paz”?! Como os deste cachorro?! Ainda não.
Intrigado, crescia em João ainda mais o desejo de saber qual é a natureza do homem para que pudesse seguir essa natureza e quem sabe ensinar isso a seu tio, a seu pai e a todos que quisessem a paz que encontrara naquele cachorro.
Certa noite, quando sua mãe lhe colocara para dormir, João lhe fizera uma pergunta:
— Mãe, existe escola de cachorro para humanos?
— Como assim, filho?! — Respondera sua mãe já convencida de que dera luz a um menino de outro planeta.
— É que conheci um cachorro guerreiro e ele me mostrou a paz, mas não me concedeu a paz. Disse que eu deveria conquistar por conta própria, segundo minha própria natureza.
Sua mãe, surpreendida, suspirou em resposta:
— Bem, filho. Se o cachorro guerreiro te disse tanto, por que você não pergunta pra ele onde é essa escola?
— Ah, mãe! — Respondeu João, encabulado por sempre ter que ensinar os adultos. — Até os cachorros têm limites, sabia?!
Um dia de inverno, depois de tantas perguntas sem respostas, João desabafara com sua árvore de estimação, um velho Carvalho apelidado gentilmente de “Mago”.
— Diga-me, Mago. O que realmente importa? O que de fato estou fazendo aqui? Qual é a minha verdadeira natureza? Sinto-me perdido. — O Carvalho, embora fosse todo ouvidos e “encantasse” João com as virtudes da presença, cumplicidade e comprometimento, também não podia lhe indicar o caminho.
Então, era início da primavera quando um novo diretor fora contratado para a escola.
— Bom dia, turma! — disse o diretor ao adentrar a sala de aula de João. — Antes de me apresentar, gostaria de fazê-los uma pergunta muito importante: vocês sabem qual é a verdadeira natureza dos homens?
João, que até então estava absorto em suas reflexões, levara um susto e de súbito levantara a cabeça, alcançando diretamente os olhos do diretor. Ambos se encararam apenas por alguns segundos, quando João, para o espanto da sala, exclamara bem alto:
— São olhos de cachorro! Tenho certeza. Tenho certeza.
Um silêncio místico invadiu a sala. João tentava, sem sucesso, conter as lágrimas que escorriam pelo seu rosto infantil.
— Olhos de cachorro guerreiro — repetia ele, agora mais tímido, entre soluços. — Eu encontrei. Eu encontrei!
O diretor, que observara respeitosamente a certa distância, aproximou-se de seu discípulo com ternura sem dizer uma palavra. Mas João sabia ler aqueles olhos: a verdadeira jornada acabara de começar.
Autor: Leandro Guedes dos Santos
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