– Primo, eu leio Dostoiévski, Machado de Assis e outros autores que eu considero de difícil e lenta digestão, mas quando eu comento sobre passagens que remexeram minha alma, de vez em quando, você sai com cada interpretação esclarecedora que eu sinto quase como se estivesse ouvindo do próprio autor do livro. Como é que você, tão novo, sem ter lido nem metade do que tenho lido, consegue fazer isso?
– Ah, é simples. Quando você está descrevendo uma passagem de um livro que lhe tenha sido marcante, eu estou ouvindo. Então eu olho para a imagem que o que você falou representa e a descrevo com minhas próprias palavras. Só isso.
– Mas, primo, como assim? Que imagem é essa?
– A imagem que a passagem representa. Não tem outra.
– Hum… – Pensou por um tempo e depois completou. – E como eu faço para olhar também para essa imagem?
– Boa pergunta. Eu nunca tinha pensado sobre isso. Penso que seja, pelo menos em parte, uma questão de treino.
– Treino? E como eu treino?
– Ué?! Você já lê bastante, não lê? Isso já deve dar um bom treino.
– Mas, com tudo o que tenho lido, mesmo assim não chego nisso.
– Quando você for ler não pode ter pressa. Preste atenção se você leu mesmo ou se apenas passou pelas palavras. Qualquer coisa volte e tente de novo.
– Mas primo! Eu sei ler! Se não soubesse não haveria como um trecho de um livro mexer tanto comigo. Mexer a ponto de me fazer rever minhas atitudes e mudá-las de acordo a um novo e melhor posicionamento ante a vida.
– Hum… preciso pensar um pouco, então. Onde será que está a diferença entre como eu leio e como você lê? Para mim é tão natural, ler é só uma questão de fé. Quem tem fé pode ler, quem não tem, até pode pensar que está lendo, mas de fato não lê.
– Ler, para você, é uma questão de fé, então?
– Não para mim! É uma lei do universo. Só a fé permite a leitura.
Diante do olhar interrogativo do primo, o outro primo prosseguiu.
– Mas note que quando digo fé, não se trata de uma mera crença, como muitas vezes, deturpadamente, se usa essa palavra. A fé verdadeira é além da crença, é confiar. É avançar com base num voto de confiança, enquanto que a crença é estagnada. E você sabe, água parada apodrece. A fé funciona como uma faca amolada cortando fora com seu fio tudo o que não é, restando apenas o que é. A crença é como uma faca sem amolação, sem fio, é um atentado a própria essência do que significa ser faca, porque uma faca que não corta, não é faca, não merece ser chamada de faca. E é dita cega, justamente por isso, porque não permite olhar para nada do que realmente seja.
– Primo, como você consegue? Como consegue falar todas essas coisas? Você deve ter começado de algum lugar. Como foi que você começou?
– Hum… pois é, como eu disse, eu nunca tinha pensado sobre isso, mas pensando bem aqui, eu acho que ouvir as histórias que meu avô conta me ajudaram bastante.
– Que avô? O nosso avô?
– Sim, nosso avô. Nós sempre conversamos, mas de vez em quando ele conta alguma história. E ouvir ele contando essas histórias fez muita diferença para mim.
– Eu tinha mesmo notado que quando você vai lá na casa dele vocês passam um bom tempo juntos. Que tipo de história ele conta?
– Nada demais. Ele gosta de contar algumas histórias que estão na Bíblia, às vezes sobre seu tempo de menino, como ele diz, e às vezes alguma lenda dessas que se passam num tempo antigo. Mas a forma como ele conta é que faz toda a diferença. E para perceber isso é preciso ouvir prestando muita atenção. Por exemplo, quem for ler na Bíblia a história de Caim e Abel geralmente fica com a impressão de que é apenas um relato sobre um assassinato ocorrido há muito tempo atrás. Mas vovô contando a mesma história ela ganha outra dimensão, pois eu sinto, quando o ouço, como se eu estivesse a avançar, em termos de conhecimento, ante o mistério divino da criação. Fica parecendo para mim que daquela história dá para saber quem sou, de onde venho e para onde vou.
– E será, primo, que o vovô contaria essas histórias para mim também?
– Tenho certeza de que sim. Ele vai ficar contente de ter mais um neto interessado em ouvir.
– Então eu vou conversar com ele. Vou pedir para ele me contar umas histórias.
– Ah, primo, tem mais uma coisa. Nosso avô é sertanejo – apesar de que já nem aparenta tanto depois de tantos anos vivendo na cidade grande. Então, você talvez tenha que fazer uma tradução do que ele fala dentro da cultura sertaneja para a cultura que você esteja mais familiarizado. Você sabe o que significa ser sertanejo?
– Você fala isso pelo fato dele ter nascido numa cidadezinha no interior do sertão, não é?
– Não. O local geográfico pouco importa. O Sertão é para o sertanejo a mesma coisa que Roma era para os romanos. É onde nasce o ser humano. Tem até um versinho que resume bem o que significa ser sertanejo:
“Bate a enxada no chão
Limpa o pé do algodão
Pois pra vencer a batalha é preciso ser forte, robusto, valente
Ou nascer no Sertão.”
– Mas isso é um trecho de uma música! É um sucesso, por sinal. Cantada por Luiz Gonzaga.
– Na aparência é só isso mesmo. Mas eu te garanto, primo, que qualquer pessoa que consiga compreender o que esses versos significam já está a meio caminho andado do céu! Digo mais, se um dia houver uma época tão obscura para a humanidade, em que impere a ignorância de tal modo que todas as pessoas não passem de bestas, mesmo assim haverá esperança, pois só precisa um se lembrar desses versos e cantá-lo a exaustão, que toda a humanidade terá a chance de despertar.
– Tá. Vou pensar nesses versos. Vou ouvir essa música. E vou procurar o vovô para conversar e pedir para ele me contar histórias como ele te conta.
Passadas duas semanas os primos voltam a se encontrar.
– Primo, tenho conversado com o vovô!
– Que ótimo! E o que tem achado?
– O nosso vô é um tesouro vivo e ambulante! Ele me contou cada história que fiquei impressionado. E ele ficou contente mesmo, como você previu.
– Maravilha. Segue ouvindo. Ouvindo e trabalhando o que ouve internamente. E considera que leva um tempo para que surjam os efeitos das transformações que você está esperando.
– Tanta gente boa a volta dele e ninguém se dá conta do valor do nosso vô! Como é que pode isso? E porque será que ele não sai a procura de quem o queira escutar?
– Pois é. Não sei. Mas ele deve saber que isso não adiantaria. Deve ter a ver com quando Jesus diz para não atirar pérolas aos porcos. Não que nossos familiares sejam porcos, não é isso. É uma questão de justiça apenas, é preciso fazer jus. Como você, por exemplo, que se importou com isso e entrou em ação indo atrás dele, pedindo para ouvir histórias e ouvindo.
– É uma oportunidade tão fantástica a que nós temos. E ele está já tão velhinho. Penso que vou tentar aproveitar o máximo que eu puder para lhe ouvir as histórias enquanto ele estiver vivo.
– Seria bom, não é? Que todos da família pudessem perceber isso e pensassem assim. Passado mais um mês e os primos se encontram novamente.
– Primo, você acredita que o homem foi à lua?
– Ué?! Claro. Não vejo porque não acreditar nisso. Aliás, não vejo nem porque polemizar sobre isso. Parece uma perda de tempo.
– Pois é, primo. É que nosso avô não acredita que o homem foi à lua.
– Como? Nosso avô não acredita?!
– Ele mesmo me contou. Eu estava ouvindo. Aberto para tudo o que ele falava. E estava achando tudo maravilhoso. Mas nessa parte eu engasguei. Foi demais para mim.
– Hum… tem alguma coisa nessa história que não está bem contada.
– Primo, é simples assim, ele não acredita que o homem foi à lua.
– Bom, então se ele diz que não foi é porque não foi mesmo. Mas eu não estou conseguindo entender como pode ser. Deve haver algum mistério aí, alguma coisa muito importante. Senão ele não diria isso. E eu achava isso um assunto banal. Eu vou perguntar isso para ele na próxima vez que eu for à casa dele.
– Confesso que ainda estou tentando encontrar um ponto de vista em que eu veja sentido no que ele me disse, mas eu não consegui ainda.
– Eu preciso ouvir dele para tentar decifrar o que há por trás dessa história.
Passados mais alguns dias e o primo encontra uma oportunidade de conversar com o avô.
– Vô, o primo me contou que o Senhor está contando histórias para ele como conta para mim. Que bom, não é?
– Sim, meu filho. Bom mesmo.
– Vô, mas o primo me contou que não conseguiu entender uma coisa. E eu, o ouvindo contar, também não pude entender. É sobre a lua, vô. Ele disse que o Senhor não acredita que o homem foi à lua.
– Ôxe! Eu não disse isso não! – O avô, sempre tão risonho e alegre, respondeu num tom como quem não gostou do que ouvia. E ainda com a feição de quem está chateado, prosseguiu. – O que eu disse foi que esse homem que falam na TV não foi à Lua. O tal do astronauta.
– Como assim, vô?
E já demonstrando novamente estar feliz como sempre, deu uma risada.
– Imagine você que ele voltou dizendo que lá na Lua só tem pedra e poeira. – Risada em tom de deboche: – Ele não foi à Lua. Pode ter ido para qualquer outro lugar, mas para a Lua não foi.
– Mas, vô? E a filmagem, e as fotos, e as pedras que ele trouxe de lá que tem composição levemente diferente das de cá?
– Cabe até a possibilidade que ele tenha ido mesmo naquele foguete até a esfera que orbita em torno da Terra e que é, em parte, o que chamamos de Lua. Mas se era para voltar de lá dizendo que só tem pedra e poeira, perdeu a viagem. Ele não viu foi nada.
Era melhor não ter ido porque aí não falava besteira.
– Vô, o Senhor está querendo dizer que a Lua é mais do que a parte física dela que observamos?
– Claro, meu filho. O que conseguimos ver com nossos olhos de carne não passa de uma sombra tosca, ainda que mesmo assim seja bela e inspiradora, do que é realmente a Lua.
– Hum… mas então, vô, a experiência do astronauta não valeu de nada?
– De nada, meu filho. Só espalhou confusão.
– Mas, vô, para chegar até lá com aquele foguete, imagine quanta batalha foi travada, quanta superação foi necessária, quanta força de vontade foi preciso desenvolver.
O avô começou a rir até quase gargalhar.
– Se estavam com tanta disposição assim, que pegassem uma enxada e fossem roçar um mato! Prestavam um serviço melhor!
O neto ainda arriscou uma última tentativa.
– Mas, vô, e em relação a humanidade? O que ele fez não foi um grande feito? Algo para ficar marcado na história humana?
O avô ria tanto que não se aguentava. Tossia e gargalhava. Tentava tomar fôlego e voltava a gargalhar. O neto já estava até com medo de ter matado o avô de tanto rir com tamanha bobagem que tinha falado. A essa altura o avô nem precisava dizer mais nada, o neto já sabia que tinha falado mesmo uma imensa bobagem.
– Na história da humanidade houve sim, vários homens que foram à Lua. Grandes homens. E não vieram com essa de pedra e poeira não. Eles viram e contaram, consistentemente, o que é a Lua. E tem mais, meu filho, para ir à Lua não precisa de foguete não. Esses homens foram até lá sem tirar os pés daqui do chão.
– Sem tirar os pés do chão? E foram até a Lua? O Senhor está falando alguma coisa em sentido figurado? Alguma analogia?
– Não, Senhor! Nada de sentido figurado. Nada de analogia. Eles foram até a Lua mesmo, lá em cima, sem tirar os pés do chão.
– E como é que pode isso, vô? A Lua é lá no alto! Bem alto!
– É como eu disse, eram grandes homens. Tão grandes que conseguiram ir à Lua sem tirar os pés do chão.
O neto ficou calado por um tempo, apenas observando aquele Senhor, seu avô. O avô, com um sorriso no rosto, continuou a observar o neto e então perguntou:
– Consegue compreender?
– Ainda não, vô. Mas estou no caminho – fez uma pausa e prosseguiu –, mas nem precisa o Senhor me dizer mais nada não, vô, porque eu já quero ser tão grande quanto esses homens que foram à Lua sem tirar os pés do chão!
Autor: Silvio Luís Ferreira
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