A Mão que Brande a Espada

– Arrói! – o homem bradou, e seu cavalo parou ao sopé da montanha.

A trilha que levava até a vila de Driadar era tortuosa e extremamente perigosa. As grandes pedras soltas e o solo irregular arriscavam a segurança do cavalo e de seu cavaleiro, mas chegar à vila fazia parte de sua última prova para enfim tornar-se um cavaleiro.

Enquanto subia a montanha, vagarosamente, Muriel fez um retrospecto mental de sua jornada até ali. Órfão, adotado pelo padre de uma pequena comunidade, trabalhava como um adulto já aos seis anos de idade. Aos doze, faminto, começou a roubar. Não se alimentou dessa maneira por muito tempo, pois aos treze já estava preso e sem direito a julgamento, como era de costume onde vivia. Certo dia, no entanto, passou por lá uma carroça da Ordem de Cristo e levou todas as crianças aptas a combater, incluindo ele.

O que para os meninos livres era uma espécie de sacrifício, para Muriel foi uma segunda chance. Diziam as regras que se você fosse capaz de servir por cinco anos, receberia o perdão divino e teria de volta a sua liberdade. Ou, se assim quisesse, poderia ser apresentado e recomendado à escola de Cavalaria dos Templários. Dos verdadeiros Templários.

O menino assim o fez. Excelente combatente, correu risco apenas uma vez, quando um ferimento feito por uma cimitarra dos mouros em seu abdomen quase não cicatrizou. Ele ficou entre a vida e a morte por dias, e ainda agora, ostentava uma imensa e escura cicatriz que doía nos dias mais frios. Veneno, diziam, mas Muriel sabia reconhecer a perícia de seu inimigo: aquilo havia sido um corte mágico.

Os anos se passaram e ali estava ele, rumo à sua última missão, que consistia em duas partes: servir de juiz e carrasco de um padre que havia ensandecido e vigiar a igreja por duas semanas, até que o novo clérigo chegasse. Era simples, era tedioso, mas ainda assim Muriel tinha a sensação de que não seria tão fácil. No meio de seus devaneios frágeis, mal se deu conta de que havia sido seguido por uma sombra misteriosa até às portas do vilarejo.

Precariamente cercado por toras rústicas, o lugar parecia abrigar cerca de cem famílias. Contou dois estabelecimentos comerciais, uma bodega que ostentava algumas linguiças penduradas do lado de fora e um armazém de couro, cujo curtidor trabalhava do lado de fora, provavelmente para evitar o mau cheiro.

Desceu de seu cavalo e foi conduzindo-o pela rua até à capela, enquanto era seguido ao longo do percurso por olhos curiosos. Chegando à praça, que abrigava a capela, avistou uma figura amarrada por cordas de cânhamo a uma árvore.

O sujeito estava magro, mas mantinha a serenidade em seu rosto, agora fino e barbado. Seu olhar penetrante encontrou o de Muriel e ele sentiu uma necessidade de desviar os olhos por um instante. O homem gemeu baixo:

– Achei que iam mandar um juiz, não um carrasco.

– Achei que um padre não era tão veloz em julgar as pessoas – rebateu Muriel.

– Um homem à beira da morte tem o privilégio de ter a sua visão do mundo ampliada. Vejo um grande homem pardo, trajando uma cota de malha. Vejo músculos e uma espada, mas nenhuma bíblia.

Muriel teve que concordar. Ele mesmo sabia que seu papel de juiz ali era fictício, uma vez que a igreja já havia decidido o que fazer, ele não poderia contrariá-la.

– Tomas por certeira a sua morte, para falar com tanta propriedade? – Desviou o assunto, para não ter de confirmar as suspeitas do vigário.

– Nessa condição – o padre mostrou-lhe a mão direita – creio que sua vinda não era sequer necessária. Onde deveria haver uma mão, haviam alguns panos enrolados e amarrados, o sangue coagulado escuro se confundia com a pele que já começava a necrosar.

De fato, o homem estaria morto em alguns dias.

– Charles é o meu nome.

– Muriel, escudeiro da Ordem de Cristo.

– Ainda não é um Templário! – o padre Charles deu um sorriso infantil – Agora entendo porque foi que o mandaram.

Muriel ficou curioso quanto àquela colocação, mas não quis perguntar. Era sabido entre as fileiras que o homem que brande a espada deve ser superior ao réu. Então tentou manter sua altivez enquanto desamarrava o homem da árvore.

– Ei, o que pensa que está fazendo? – Questionou um homem que passava por ali.

– Senhor, está tudo sobre controle, meu nome é Muriel da Ordem de Cristo, e este homem está sendo levado sob minha custódia para uma acomodação digna até o dia de seu julgamento.

– Muriel, hã? Achei que fosse nome de mulher. – o bêbado tropeçou e continuou o seu caminho.

– Todos aqui são tão simpáticos? – perguntou enquanto abraçava o padre e o conduzia até o seu cavalo.

– Nem todos, alguns gostam de te cortar a mão e te amarrar em árvores. – riu e desmaiou.

Mais tarde, quando o Sol se foi e o frio chegou, Muriel estava acendendo a lareira da choupana quando Charles despertou. Ele olhou ao redor e reconheceu aquela como sendo o anexo da capela, onde ele mesmo costumava dormir.

– Lar, doce lar.

Sua mão doía muito, e tinha febre. Muriel notou seu despertar e foi até ele com uma caneca de ferro nas mãos. Tome, é sopa, ele disse. E Charles obedeceu, estava faminto. Tentou comer também um pedaço de pão e umas raspas de queijo duro. Era o que tinham e, apesar de simples, aquela refeição lhe bastou para recuperar um pouco das forças. Ao terminarem de comer, o escudeiro recolheu as canecas, sentou-se de frente para o padre e o encarou.

– O que você fez?

– Roubei dois cavalos e uma galinha.

Muriel ficou surpreso. Ele sabia que padres tendem a ser honestos, mas não pensou que seria tão fácil obter a confissão, ou que fosse acusado de um crime tão simples.

– Agora entendo a sua mão. Essa é a pena para roubo, cortaram sua mão fora, mas… – Muriel parou. Sabia que ia falar demais. E no entanto, Charles já sabia do que se tratava.

– Mas te mandaram aqui para julgar um homem louco – completou. Pois explico, esperavam que me encontrasse morto. De certo subestimaram a sua capacidade de viajar rapidamente. Ou a minha teimosia em deixar este corpo.

Apesar do ferimento e da morte iminente, fosse pela ferida, fosse pela espada, Charles mantinha certa calma e media muito bem as palavras antes de proferí-las. Como se estivesse lendo um texto preestabelecido. Cada palavra parecia estar ali por algum motivo. Muriel então o questionou novamente:

– Por quê?

– Não eram para mim, mas é claro que você já deduziu isso. Seu eu os tivesse roubado para mim, já estaria longe. Não, não mesmo. Eu ajudei um casal de jovens a fugir, antes que fosse tarde.

Isso sim, parecia a atitude de um padre. Um padre confuso, é claro, mas que acreditava que ajudar os outros era superior às leis dos homens. De fato, Muriel sentiu certo respeito pelo homem naquele momento.

– Antes que fosse tarde. E por isso você quer dizer o quê?

– Antes que eles fossem descobertos.

– Descobertos? Omessa, não me diga que eram amantes!

– Não, tolo. Eram magos, alquimistas, feiticeiros. Chame do que quiser, do que a igreja te mandar chamar. Eram jovens especiais, que podem fazer o bem, contanto que se afastassem das pessoas ignorantes que os cercavam.

Muriel se levantou assombrado, recuou dois passos, sacou a sua espada da bainha, que estava apoiada próxima à estante de livros e a apontou à garganta do homem sentado.

– Feiticeiros! – bradou – Você ousou auxiliar feiticeiros a fugirem?! Ora essa, então você merece um destino pior do que a simples lâmina mortal. O fogo purificador será a sua sentença!

– Isso – Charles tossiu – se eu sobreviver até lá. E riu.

Os dois não falaram mais depois daquilo. Charles logo dormiu, enrolado numa coberta de lã ao lado do fogo. Muriel passou a noite em claro refletindo sobre os acontecimentos daquele dia tão peculiar.

Sua última missão era condenar à morte um homem que provavelmente não fosse durar até o julgamento. Além disso, deveria guardar a igreja até a vinda do próximo vigário, mas por quê? Que risco a igreja daquele pequeno vilarejo poderia correr? E por que parecia que tinha alguma coisa errada nessa história? Resolveu então sair e tomar um ar fresco, o padre não iria a lugar algum.

Rodeou o quarteirão no silêncio da madrugada quando sentiu um aroma forte de rosas. Ao procurar de onde vinha, foi seguindo até os portões da cidade, agora deserta. Chegando lá, viu amarrado sem uma das toras dois cavalos. Um deles carregava um alforje com ervas aromáticas, então parecia ser dali que vinha o cheiro.

Muriel conduziu os cavalos até à estrebaria. Provavelmente eram os cavalos roubados, que agora haviam sidos devolvidos. Mas como, e por quê? Ao entrar de novo no anexo da capela, levou consigo o alforje de couro com as ervas. Abriu-o e lá dentro encontrou um papel com instruções para a preparação de um unguento. Ninguém precisou dizer nada para ele. De alguma forma ele sabia que aquele unguento havia sido um presente dos dois irmãos e que poderia salvar a vida de Charles.

Passou algumas horas refletindo sobre aquilo enquanto, de tempos em tempos, ia verificar a febre de Charles. Olhou a sua mão uma vez e o cheiro quase o fez vomitar. Aquele homem não passava dessa noite.

Muriel viu-se em conflito. Ao mesmo tempo que o correto seria manter Charles vivo até um julgamento justo, também sabia que se ele, um escudeiro da Ordem, manipulasse artefatos de feitiçaria, ele seria expulso e julgado. Provavelmente condenado à morte também. Lembrou-se então de uma máxima que havia escutado de um Cavaleiro antigo: “São necessárias habilidade e conhecimento para brandir a espada, mas é a sabedoria que lhe permite saber quando o fazer”.

Templário em Santalla del Bierzo - Espanha

Aquela noite foi uma noite de oração.

Charles acordou com um feixe de luz em seu rosto. Quase não tinha febre e a mão não doía mais. Teria ele morrido durante o sono? Seria essa luz a bênção do Senhor sobre sua face? Não deixava de ser, afinal, banhado mais uma vez pela luz do Sol e era uma benção que ele mesmo esperava não desfrutar ainda ontem. Olhou para sua mão e viu ataduras limpas. Sentiu seu cotoco úmido com uma espécie de emplastro.

Ao redor, viu Muriel ajoelhado, orando em latim. Ele reconhecia aquela prece, ele estava se perdoando com Deus, por ter feito algo errado. Naquele instante tudo veio à mente de Charles como um relâmpago.

– Você me curou – ele disse.

Muriel parou sua reza, se levantou e disse com um sorriso forçado: – Eu não fiz nada, sou apenas um servo de Deus que fez a coisa certa e salvou uma vida inocente.

– Mas eu sou um criminoso, serei julgado.

– Eu decidi que não.

Charles estava confuso, mas Muriel notou e respondeu sua pergunta silenciosa.

– Você já foi punido. – apontou para um livro de legislação local aberto sobre a mesa – A pena para roubo é a amputação do membro superior direito, ou seja, a sua mão. Como você já foi punido, não há necessidade de um julgamento. Você está quite com a justiça.

Charles ficou atônito. É claro, fazia sentido. Mas sua alegria durou pouco quando se lembrou de que ele ainda poderia ser julgado por associação com feiticeiros. E explicitou sua preocupação para Muriel, que deu outro sorriso nervoso e retrucou.

– Bom, do modo que eu vejo, você não teria como saber que eles eram feiticeiros. Nem ninguém da vila, então vamos deixar as coisas como estão.

– Mas eles podem inferir pelo unguento milagroso que salvou a minha mão e…

– Que foi aplicado por mim – Muriel o interrompeu – sem a sua permissão, enquanto estava inconsciente. Sim, parece que eu estou realmente em apuros.

– Mas você poderia conquistar a sua liberdade em poucas semanas. Por que se condenar assim?

– Porque Charles, agora eu compreendo. Eu jamais seria livre de verdade, sabendo que não fiz aquilo que acreditava ser correto. Para que serve um homem livre, se o custo dessa liberdade é a morte de um irmão? Nenhum homem deve viver, se para isso, alguém tiver de morrer.

– Você vai ter que fugir – conjecturou Charles.

– De nada me serviria mesmo, uma Ordem de Cavalaria que não age como tal.

– Você vai precisar de ajuda.

Charles ficou calado um tempo. Eles se encararam e se reconheceram como homens de valor. Muriel reconheceu a coragem de Charles, que o levou a ir contra os dogmas de sua igreja, em prol de auxiliar seus irmãos, afinal, aquelas eram as bases de sua fé. E Charles percebeu essa força em Muriel, de reconhecer-se instrumento necessário para a manutenção desse princípio de amor, que era auxiliar o próximo, nem que isso lhe custe a própria vida.

Eram agora, mais do que nunca foram, irmãos.

A sombra que seguia Muriel desde sua chegada à cidade comunicou a localização dos dois para a Ordem. Algum tempo depois eles foram encontrados pelos Templários, ao sul do lago Underwood. Eles estavam sendo procurados, mas não para serem julgados ou executados. E sim, condecorados.

Aquela era sua prova final. Agora eram Cavaleiros Templários!

Autor: Murillo Augusto de Melo Oliveira

 

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