Diva e Romet

Dona Diva esperava ansiosa a visita de seu neto Romet. Assim que ouviu o táxi na porta, abriu a porta com um sorriso e abraçou fortemente o rapaz, pedindo-lhe as novidades, e eles se sentaram à mesa para colocar a conversa em dia; a avó perguntava e o neto respondia. Após o almoço, eles sentaram-se na sala para assistir TV e dona Diva retomou seus eternos trabalhos de tricô. O rapaz olhou para a avó e reparou, em meio a sua alegria de lhe ver, uma nota de preocupação.

— O que te preocupa, vó?

— Oi meu filho? Imagina, nada… estou tão feliz em te ver! É que… ando pensando no que vou te deixar depois que eu… você sabe…

— Sim, entendo. Mas, não se preocupe com o que vai ficar. Eu estou bem, tenho trabalho e tenho um caminho para seguir.

— Sim, eu sei que é bem-sucedido, meu bem, e tenho muito orgulho de você! Mas tenho que organizar isto antes de… é difícil falar isso assim, mas… de morrer, meu filho, de morrer!

E com isso parecia que dona Diva tirava um peso das costas, afinal, por que não falar daquilo que é evidente e certeiro?

— Você sabe que sou velha e já não sinto mais a disposição de antes, minhas mãos não tricotam tão velozmente, meus ouvidos me enganam, e o ar me falta de ir e voltar da vizinha. É o peso dos anos que me cai…

O rapaz lançou à avó um olhar profundo e sorriu levemente, em uma mistura de alívio e pena. Mas, de alguma forma, o amor ali imbuído tranquilizou dona Diva e ela começou a desabafar seus cansaços e contar-lhe sobre seus feitos da vida. Como nasceu, mudou-se, cresceu, casou, cuidou, educou, tricotou. Havia sido uma esposa, mãe e professora muito correta e precisa nas ações. Devotou-se a marido, filhos, netos e alunos. Fez o que lhe dizia sua moral feminina de educadora persistente. Iluminou aqueles em seu entorno com sua alegria e tenacidade, mas agora sentia que o brilho se evanescia e em seu coração sabia que se aproximava a hora em que ele se apagaria de vez. E o que faria? E o que seria feito dela? De tudo que ela construíra? E o que sentiria, e o que sentiriam os que ficassem? Essas últimas perguntas eram as que mais incomodavam, mas não ousaria compartilhar seu desespero com o neto. Quando terminou seu desabafo, Romet perguntou:

— Vó, você tem medo de morrer?

— Medo? Ora, meu filho, não sei dizer… tenho medo de sofrer e fazer sofrer.

— E quem irá sofrer?

— Não sei… e se for doloroso? E se meu corpo adoecer e darei trabalho para vocês?

— E o que te dói agora?

— Agora… meu corpo não sente dor.

— Então, o que lhe dói?

— Me dói a preocupação.

— Então, a preocupação é uma dor do corpo?

— Não, é um peso em minha alma, amado!

Romet sorriu e quase riu.

— Então, vovó, quando a gente morre, o que desaparece, o corpo ou a alma, o que é evidente?

— O corpo deixa-se de ver, a alma… não sei.

— Então quem tem medo de morrer é quem vai morrer, não? O corpo?

Dona Diva pensou, respirou, e enfim disse:

— Sim, parece fazer sentido… E a alma para onde será que vai?

— O que lhe parece? Que o corpo vive sem a alma ou que a alma vive sem corpo?

— Que pergunta estranha, meu filho!

— E o que você pensa? Tenho curiosidade pela sua resposta.

— Bom, podemos ver o corpo de um morto e definitivamente não está vivo. Lembro-me de teu avô, não era meu velho naquela caixa!

— Realmente não era… tem razão. E o que me diz da diferença do vovô vivo e daquele corpo naquela caixa?

— Um era meu amado marido e companheiro, cheio de energia, trabalhador e brincalhão até o fim… no dia antes de morrer me disse que queria se transformar em um pássaro para voar até o sol e que, quando chega-se ao sol, serviria de frango assado para os habitantes de lá! Ele adorava frango assado de domingo, e estava me pedindo de almoço, o danado!

Ambos caíram na gargalhada, lembrando de “seu” Franco, o avô.

— E o outro, o da caixa…

— Aquilo era apenas um boneco de cera, frio.

— Então do que sente saudades? Do boneco ou do companheiro?

— Ora, claro que do companheiro, meu velho.

— Então, se o que morre é o corpo e o corpo não somos nós, sentiremos dor ao morrer ou a alma que se livra da dor do corpo com a morte?

— Hum… parece que a segunda coisa que falou faz mais sentido…

— E ainda tens medo, vó?

Dona Diva pensou, respirou e tornou a falar:

— Melhorou, estou mais aliviada. Mas, ainda não conversamos sobre o que acontece com a alma, porque também ela não se vê para onde vai ou o que faz depois de morrer. Seu avô, por exemplo, foi-se.

— É mesmo? Pois, pude ouvi-lo pedindo o frango para o almoço agora a pouco!

— É, essa foi minha memória dele.

— E não há outras memórias, mais vivas que essas? Mais intensas e mais profundas? Batalhas vencidas juntos, um sentimento compartilhado que não se pode explicar e, em todos esses anos sem o vovô, não se apagaram?

Dona Diva sentiu seu coração esquentar com essas palavras e suas mãos a tricotar pararam por um instante, lembrando dos bons momentos com seu velho Franco.

— Essas lembranças são as profundas marcas do contato de uma alma com a outra. Não é? – Romet disse, como se pudesse ler nos olhos de sua avó o seu coração.

— É muito bonito o que você disse e faz muito sentido, meu poeta! – disse dona Diva com os olhos umedecidos de lágrimas.

— Faz sentido vovó que esse sentimento e essas marcas se extinguem só porque o “boneco” se desfez?

— Não, meu amor, não… E quem sabe meu amado Franco esteja me esperando em algum lugar.

Romet sorriu com brilho nos olhos e disse:

— Sim, por que não?

— Filho, mas não vão sofrer os que ficarem? Eu me lembro da tristeza que senti quando seu avô se foi.

— Sim, sentiremos saudades. No começo a separação é amarga, mas com o tempo a dor passa e as lembranças são boas. Veja só, hoje não choramos ao lembrar do vô, demos risada e a lembrança foi doce.

— Sim, penso que tenha razão, meu amor.

Com isso, dona Diva abraçou o neto e se sentiu mais leve e sem tantas preocupações.

Naquela noite dona Diva deitou-se mais calma para dormir, suas questões estavam mais sanadas do que nunca e seu amado neto estava junto à ela. Caiu em um sono profundo. Romet saiu de seu quarto e se aproximou da cama da avó sem fazer ruído. Murmurou para si:

— Dona Diva, que caso belo me proporcionaste. Seu neto Romet é um perfeito anagrama para mim, a Morte. Vim levar-te para sua outra forma de Vida na figura terna de teu ente mais querido. É hora de pegar o trem…

A Morte pegou no colo dona Diva adormecida, tirando-a delicadamente da cama. Embarcou-a no trem e se despediu com uma lágrima nos olhos dizendo: que belo é ser humano e, mais belo ainda, viver e morrer como um filósofo.

Autora: Giovanna Sandoval Fioresi

 

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