Misericórdia

O senhor já viu dois bichos que se encontram buscando livramento? Doutor, a natureza é a natureza. Os dois se gostarem era certo como todo dia o Sol nasce e a noite chega. Eles se uniram pela cruz que carregavam. Um foi a salvação do outro. Tenho pra mim que só depois veio o amor. O amor é coisa que demora pra se instalar.

Desde pequeno, o garoto era tido por santo. A menina, coitada. Seu Anunciato queria que fosse mais Maria que a Maria de nosso Senhor. Misericórdia! Tenho pra mim que nenhum dos dois nunca quis esse destino não.

Eles não falavam, mas o olhar revela mais que qualquer lamento, doutor. Eu via nos olhos deles. Pra alma que não vive aprumada à sua natureza, o corpo já não é mais lar não. É casa vazia de santidade. Desrespeitar a natureza é heresia com o espírito. Misericórdia! Deus me livre!

O senhor já pensou que tristeza pro rio correr contra a correnteza? Doutor, o caminho do rio começa na nascente. A correnteza ajuda a água a correr seu destino. É assim com tudo na natureza. Os peixes, as aves, os bichos tudo são felizes porque aceitam o destino que Deus escolheu pra eles. E com o homem haveria de ser diferente por quê? O destino do menino não era ser santo. Nem o da menina. Jesus, nosso Senhor, só carregou a cruz porque era seu destino. Não foi José nem Maria que determinaram não. O Cristo já nasceu sabendo da sua natureza. Os pais só fizeram respeitar. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Fico imaginando José e Maria a primeira vez que ouviram isso. Eu arrepio toda vez que ouço.

Misericórdia, doutor. Já pensou o que é ser tratado por santo desde menino… sem ser santo! Sempre tive pena do menino. Querendo ofertar a Deus, os pais arrumaram foi um fardo pesado pra ele.

O povo aqui é muito do supersticioso. Acredita no fantasioso. Se deixa levar pelas ilusões da cabeça, sabe? O menino nasceu no aniversário do Cristo. Foi só por isso, doutor. Daí o batizaram de Jesus e completaram a derrocada dele. Desde cedo era “compadre, comadre, traz Jesus aqui pra abençoar”. A vizinhança tudo queria ter com o menino. Arrastavam ele até pra ver os enfermos. Misericórdia!

Olha, seu doutor. Eu num sou não, senhor, mas na dúvida, né? A gente faz o sinal da cruz que é pra garantir. Pra evitar descontentamento do lá de cima.

Pois bem… O parto de dona Iracema foi muito difícil. Os gritos dela eram de ouvir por toda vizinhança. Ela quase se foi. Perdeu muito sangue. No desespero, seu Anunciato fez a promessa. Se a mulher sobrevivesse e a filha vingasse, daria a menina pra Jesus. E, no fim, não é que deu mesmo? O senhor desculpe a brincadeira. Mas ô promessa sem jeito, o senhor não acha? Deus que me perdoe, mas hoje tenho pra mim que teria sido melhor pra menina crescer sem a mãe.

Se era. A menina não podia nem rir riso de criança. Aquilo não era vida pra uma criança não. Tudo era motivo de ser repreendida. Pobrezinha. Dona Iracema e seu Anunciato não deixavam ela sair da linha… da linha da Maria de nosso Senhor. Disciplinamento em por demais faz bem não.

O senhor entendeu? Os pais, o povo que elegeu eles pra isso. Só que esse destino que traçaram pros dois não era o deles. Ninguém esperou pra conhecer a natureza de cada um. E como que um pai e uma mãe podem traçar o destino de um filho assim, doutor? Sem conhecer a natureza dele.

Ah, aqui todo mundo conhece todo mundo desde sempre. Eles cresceram juntos, mas se aproximaram pela santidade. Os pais quase que deram as crianças pro padre criar de tanto que queriam ver os filhos educados no caminho da religião. Desde cedo, o menino e a menina viviam na igreja ajudando o padre nas missas. Aí o senhor sabe como é, né?

Os dois foram crescendo e seguiram o curso do rio. O menino virou homem e a menina virou mulher. Eu vi a transformação, a mudança no olhar daqueles dois. Não tinha mais aquele esvaziamento de vida. A gente percebe o brilho da alma quando ela se alegra. Olha, comentário não tinha não, senhor. Pelos menos comigo nunca ninguém falou. Os pais acharam que eles tavam firmes na fé, que tinham se alegrado pela luz do Senhor. Eu sabia que a reza deles era outra. O amor é a coisa mais linda na vida. Fiquei feliz, mas temi por eles.

Foi o padre que descobriu e se encarregou de conta. O senhor veja: amar agora virou pecado, foi? Em dois tempos, Jesus virou foi Judas. Maria, a pecadora. A cidade toda tomou o engraçamento por traição. Aqueles dois sofreram, doutor. O bicho homem é capaz de cada maldade, não é mesmo? Misericórdia! O povo instaurou seu próprio tribunal de Inquisição. Atiraram bem mais que a primeira pedra. Vi fazerem cada coisa com eles que tenho vergonha de falar… Tenho é vergonha de mim. Não tive coragem de fazer nada pra impedi, doutor. Mas também, na nervura que o povo tava, se Zé Pescador abre a boca, quem ia pra cruz era eu.

Doutor, eles não sumiram, foram embora sem avisar. É diferente. Eu mesmo, se pudesse voltar no tempo, também tinha caído no mundo. Faltou foi coragem. Isso aqui num é terra pra dois anjinhos que nem eles não. Eles foram atrás da felicidade que nunca iam ter aqui. Os pais deram queixa porque a consciência deve de ter pesado. No fundo eles sabem o que fizeram.

O senhor me permite um pedido?

Que comadre e compadre não me ouçam, mas se o senhor encontrar Jesus e Maria, não traga eles de volta pra essa terra não. Só peça desculpa por tudo em sinal de nosso arrependimento.

Autor: Rafael Silva Miramoto

 

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