Moonlight Sonata

Como se pode resumir a história de uma vida?

Hoje cheguei a um ponto crucial de toda minha trajetória. Como cheguei aqui, nesse galpão velho e cheio de goteiras frias, nessa noite escura, com esse vento a soprar? Isso é algo que não pude de forma alguma controlar. Mas aqui estou. E para você, caro leitor, compreender o que se passou comigo e porque cheguei a esse ponto, terei que contar minha história.

O ano era 1946. Naquele ano eu nasci. Cuidadosamente, após meses sendo gestado, eu nasci belo, inspirado e inspirador. Naquele mesmo dia fui levado a meu primeiro lar e lá conheci Melinda. Suas mãos eram jovens e delicadas. Ela tinha um toque suave que me acariciava a cada encontro.

Melinda era uma moça alegre, disciplinada, gostava de bordar e de ler, mas seu principal afazer era comigo. Todos os dias nos encontrávamos às 8h. Havia um ritual ao chegar perto de mim. Lembro-me bem! Ela sentava-se, abria minha tampa, acariciava-me, passava o dedo suavemente nos detalhes de minha caixa, uma a uma das linhas. Fechava os olhos, respirava fundo, como se convidasse algum anjo para participar daquele momento e logo depois iniciava nossas doces manhãs com Chopin e Bach.

Cada pequena frase musical era tocada com a alma. Me sentia pleno por existir e ser o melhor que eu poderia ser: um magnífico piano de armário, com teclas cuidadosamente polidas, timbre inspirador, moldura desenhada e esculpida por mãos que sabiam o que faziam.

Com o passar do tempo, Melinda começou a dar recitais em sua casa. Seus amigos nem sempre me tratavam bem, muitas vezes nem me percebiam ali quando a música cessava. Taças de vinho vinham parar em cima de mim e minha função deixava de ser belo e harmonioso; me transformavam em um invisível armário para guardar taças.

O tempo passou e a jovem começou a namorar um daqueles rapazes e, aos poucos, fui sendo deixado de lado. Ela se casou e teve três filhos e aí, pouco nos encontrávamos naqueles anos, a não ser quando alguma visita aparecia e pedia para ela tocar. Então, meio sem jeito, sentava-se e respirava fundo. Jamais perdera sua conexão, entretanto, seus dedos não eram mais tão firmes e as notas eram escorregadias agora. Eu suspirava com ela, sorria e me fazia ser notado. Queria conquistá-la para que viesse até mim mais vezes.

Certo dia, Melinda sentou-se com olhar triste, abriu minha tampa, passou suavemente seus dedos em minhas teclas e pude sentir uma lágrima a molhar uma delas. Contou-me que estava doente e se despediu com tristeza.

Levou algumas semanas até ela se ir. A família, enlutada, não conseguia mais admitir minha presença na casa. A dor era muito grande e minha voz fazia todos lembrarem de Melinda e logo a família se desfez e vendeu-me num dia de verão a um jovem rapaz da zona Leste da cidade.

A adaptação à casa de Oscar foi fácil. O ano era 73 e embora sentisse saudades dos velhos tempos e tivessem quebrado uma pequena parte de meu pé na mudança, ou arranhado minha lateral, eu me sentia renovado e animado com a nova oportunidade que a vida me dera. Oscar era um rapaz muito talentoso, e o que ele realmente gostava era Rock’n roll. Me diverti muito naqueles anos.

Oscar vivia em meio aos seus cigarros e partituras em branco, que a cada dia eram preenchidas com notas construídas com muito cuidado. Era meio tímido, é verdade, como as mais puras almas. Mas para além das aparências, Oscar era muito disciplinado: sentava-se todos os dias comigo. Não estudava da mesma forma que Melinda, mas escrevia novas músicas e buscava sonoridades as quais jamais pensei que pudessem sair de mim. No seu repertório, When I’m Sixty Four e outras canções inesquecíveis. Mas também rolavam umas bossas e umas valsinhas do Chico. Muitas taças de vinho foram colocadas sobre mim, mas eu deixei de me importar com isso. Frescura!

Embora estivesse muito feliz ali, alguns anos após minha chegada, Oscar começou a passar por muitos apertos de grana. Eu sentia sua aflição e tão logo ele começou a me deixar de lado, assim como seu sonho de compor. A necessidade o fez desistir. Primeiro, passou a se sentir bloqueado. Levei alguns murros em minha caixa. Nossa relação começou a ficar tensa. Ele sentava-se ao meu lado, mas nada conseguia tocar. Começou em um trabalho no qual manipulava uma máquina de fazer alguma coisa, que até hoje não entendi para que servia e porque precisavam dela. Acho que nem ele entendeu…

Após algum tempo esquecido, sendo usado apenas como guarda-tralhas, fui vendido novamente. Nossa despedida foi triste e difícil para mim. Desde então, nunca mais tive notícias dele.

Foi numa tarde fria de inverno no ano de 83 quando cheguei à casa dos Haupp. Edgar ajudou os carregadores, que eram meio descuidados e lascaram parte de minha tampa na subida da casa. Agora, eu acumulara mais cicatrizes da vida: além das batidas nas mudanças, o cheiro de cigarro, as marcas de apoiar taças e alguns vinhos derrubados sobre mim. Nada grave. Mas minha afinação estava bem comprometida.

A casa era simples e harmoniosa. Não havia TV, apenas uma estante cheia de Hermann Hesse’s, Garcia’s Marques e Machados.

Edgar era um senhor com seus cinquenta e poucos (ou muitos) anos. Professor de matemática durante toda sua vida, levava a música como segundo plano e nunca desistiu.

Voltei a soar músicas que pensei que jamais sairiam de mim novamente. Choppin, Bach, Mozart. Que saudades! Além de Edgar, seu filho Pedro também gostava de sentar-se comigo. Ficávamos juntos por horas e eu me senti novamente pleno.

Edgar era viúvo e gostava também de tocar algumas polcas e valsas, fazendo com que a casa fosse sempre muito animada. Os amigos de Pedro, que tinha pouco mais de 25 anos na época, também enchiam a casa. Uma felicidade só.

Certo dia, Pedro levou Lúcia para conhecer seu pai. Uma moça bela, magra e alta. Ele quis se exibir e tentou tocar um Minueto simples, mas, de tão nervoso, inventou a maioria dos acordes. Mesmo assim, ela adorou (devia estar realmente apaixonada – risos).

Cerca de doze anos se passaram e Edgar se foi. Ele estava sentindo-se mal nos últimos dias, com uma aparente falta de ar que terminou em uma parada cardíaca. Fiquei mais alguns anos com Pedro e Lúcia, mas ela passou a não aceitar mais que eu e ele nos encontrássemos. Nunca entendi o porquê, mas ela se incomodava com meu som, com o toque, com a música. Fiquei calado por vários anos, até que um dia, um dia triste, eles resolveram se mudar. Era o inverno de 2003 e a chuva caía sem piedade. Lúcia decidiu que não me levariam na mudança e fui colocado no quintal da casa, debaixo de um pequeno telhado que não podia me proteger. O velho galpão.

Nesse momento me encontro agora. Minha madeira começa a envergar com a umidade e creio que minhas cordas e meus martelos também foram afetados. Nunca mais serei o mesmo. Tornei-me agora triste e abandonado, a passar dias e noites aqui, na chuva, no sol. Minhas lembranças me levam aos velhos e bons tempos quando ainda possuía toda beleza de minha forma e de minhas notas. Agora não passo de um piano velho e abandonado, prestes a me tornar madeira para aumentar o fogo de alguma lareira.

Mas não, espera…

Vozes que se aproximavam. São duas moças jovens, que deviam ter seus vinte e poucos anos. Pulam o muro com lanternas nas mãos. Ficaram absolutamente espantadas. Mexeram e remexeram. Abriram minha tampa superior, observaram tudo que puderam, tocaram em minhas teclas. Estava claro que eu sofrera muito com aquilo tudo. De repente, mesmo com dificuldade, uma delas começou a tocar uma canção que nunca havia soado: Moonlight Sonata. A noite escura e silenciosa fez ressoar por todo canto os sons duros e difíceis que saíam de mim, mas que, apesar disso, ainda podiam chegar a iluminar o céu e descrever perfeitamente o luar, como quis Beethoven.

Voltaram no outro dia com mais quatro rapazes, jovens como elas, e rapidamente me tiraram dali. Me levaram a um luthier – um médico de instrumentos – e ali eu fiquei por várias semanas sendo cuidado e restaurado. Muito de mim se perdeu, é verdade. Meu som não é mais o mesmo e as marcas de minha vida jamais sairão de mim, mas elas me transformaram em um piano forte, cujo timbre era ainda mais belo, com marcas que as pessoas admiravam e se perguntavam quem as teria feito.

Após algumas semanas, fui levado cuidadosamente a meu novo lar. Pela primeira vez, sem perder um centímetro sequer, tamanho fora o cuidado. Fui levado a uma casa linda e grande, onde as pessoas eram todas gentis. Nesse casarão todos eram jovens, se não de idade, de coração. Ali funcionava uma escola de filosofia, e todos tinham um grande apreço pela música, pela arte e – como se pode esperar – pela sabedoria.

Na semana de minha chegada, houve um recital cuja principal música da noite foi aquela que mudou minha vida: Moonlight Sonata. Seus arpejos um tanto melancólicos e graves, e sua melodia dramática soariam para sempre em mim como um canto de renascimento e eu senti que ali seria cuidado para sempre.

 

Autora: Daiana Fulber


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