Numa pequena cidade litorânea vivia um menino feliz com sua família. Porém, certo dia seu pai e seus irmãos mais velhos foram chamados pela guerra. Eles não mais regressaram ao lar. O garoto ainda tinha sua mãe e uma irmã pequena. Com muita dificuldade foram tocando a vida, até que sua mãe e a pequena foram acometidas por uma grave doença que assolava a região. Logo as duas também se despediram deste mundo. Sozinho de vez, o meninote foi acolhido por sua tia, uma senhora muito peculiar. Havia rumores de que não tinha a cabeça no lugar, mas era dotada de um coração nobre e muito generoso.
Às vezes, ela passava a mão sobre seus cabelos com carinho, como se quisesse espantar as dores e as preocupações que rondavam aquela precoce cabeça. Mas por outras vezes, o sobrinho compartilhava as inquietações que perturbavam o seu coração e ela não podia encontrar respostas para tantas dúvidas. Assim, à medida que o menino crescia aumentava o rancor que sentia pela vida; só enxergava aquilo que acreditava ter sido tomado dele. Ainda era grato, de certo modo, mas se julgava traído pelo mundo.
Numa noite, sentindo-se muito triste, caminhou pelo porto e viu um pequeno e velho barco. Parecia abandonado, assim pensou que ninguém procuraria por ele ali. Como queria estar sozinho, escondeu-se num canto da embarcação e lá passou a noite. O ambiente lhe deu uma sensação de muita segurança; naquele momento se desfez de muitas mágoas em forma de lágrimas. Desfrutou de uma noite tranquila de sono; porém, perdeu a noção do tempo e quando acordou já havia movimento na embarcação.
Teve uma impressão de que… mas não podia ser. Parecia que o barco estava navegando! Como se despertasse de um sono milenar, de um salto pôs-se de pé deixando o esconderijo, deparando-se logo com um senhor muito idoso que o fitava sem esboçar a mínima surpresa.
– Excelente senhor! – disse o menino de impulso – na noite passada me senti muito mal e me refugiei nesta embarcação abandonada.
– Este barco pode ser velho, rapaz, mas veja por si mesmo que ele ainda não é inútil! – o barqueiro ensaiou um sorriso.
Já quase não se via a costa; o barco valente avançava mar adentro com grande destreza.
– Mas minha tia… ficará muito preocupada. Preciso voltar!
– Claro, rapaz! Não se preocupe, nós voltaremos, é certo… – prosseguiu o senhor, e por um momento o semblante do rapaz se iluminou. – … mas somente depois de completarmos a nossa missão – concluiu o condutor da barca.
– Nossa missão? Então me levará mesmo contra a minha vontade?
– Não se preocupe, filho. Logo regressaremos e com a recompensa da missão cumprida. E ninguém aqui entrou contra a própria vontade. Espero que não se faça de bebê agora! Não há volta para nós, apenas depois de cumprirmos o nosso dever.
Não tinha jeito, o velhinho era irredutível. Maldita hora em que… Não tinha remédio, a sorte estava lançada. O melhor era colaborar, qualquer que fosse a missão. O rapaz começou a puxar assunto:
– E que missão seria essa? Acaso pescar uma avantajada criatura para vendermos no porto? Não sou bom de pesca, mas se vou ajudar também mereço uma participação na venda!
– Quase isso… – riu o barqueiro – Um pescador está desaparecido e pode ser que tenha naufragado nas pedras de uma perigosa ilha ao longo do trajeto.
– O senhor ficou louco? Uma missão de resgate num barco tão velho e pequeno?
– Interessante sua observação, rapaz, mas vim exatamente por isso. O barco é do tamanho ideal para a missão. Aquelas embarcações imensas jamais passariam por onde precisaremos passar. Além disso, esse barco é feito a partir da madeira de uma árvore sagrada, protegida pelos deuses. Sua construção é de uma técnica muito antiga, precisamente para perdurar e suportar as intempéries.
O menino suspirou e se preocupou pelo que poderia acontecer. Mas, nos dias que se seguiram, ele começou a enxergar a sabedoria que o barqueiro imprimia em tudo que fazia. Ele sabia observar o céu, as águas, as aves; podia dizer com certa antecedência quando a chuva chegaria. Com vento favorável ou não, mantinha a mesma serenidade. Recebia os dias de sol e de chuva com a mesma gratidão no coração. O menino tentava, mas não podia entender. Esse era um ensinamento pelo qual sempre ansiara. E o barqueiro dizia:
– Eu me sento no meio da minha barca, filho, para observar o que está acontecendo e melhor saber como agir. Sabia que mesmo os ventos “contrários” podem ser convertidos a nosso favor?! Isso exige bastante atenção, concentração, autocontrole e boa memória. É preciso saber o que fazer no meio das tempestades, sem se deixar paralisar pelo medo num canto qualquer do barco. Não basta saber, é preciso sempre se lembrar do que se deve fazer.
– A vida é dura, barqueiro… – o menino dizia. O barqueiro o olhava com compaixão; não o repreendia. Apenas respondia: – Então seja mais duro do que ela, aprendiz!
De fato, a jornada era longa, e com o tempo o garoto foi se tornando mais resistente às tempestades. Já não se impressionava pelo mau tempo; já não se empolgava demais pelos dias de sol. Sabia que um e outro passariam, mas que ele permaneceria.
– Não teme a solidão, barqueiro? – um dia perguntou o rapaz, olhando a imensidão do mar e pensando em como aquele senhor enxergava a vida de uma maneira peculiar.
– Não, filho… É preciso saber quando a solidão é benfazeja. O destino se encarrega de trazer as pessoas necessárias em cada momento. E eu as aceito de bom grado!
– E da morte, tem medo? – o menino considerou os perigos que enfrentavam.
– O medo existe, mas sem ele não teria tanto valor a coragem. E essa nos impulsiona até onde devemos ir, não importa o preço a se pagar. Mas acredito, aprendiz, que não existe morte para os atos valorosos e consagrados aos deuses. Neles viveremos…
O menino ficava embevecido. Tanto aprendeu, que pensava já estar cruzando o limiar da meninice. Acreditava que já possuía a coragem, de tanto pensar e ouvir falar sobre ela. Mas o mar não tardaria em oferecer a oportunidade de uma grande provação.
Ao se aproximarem da ilha de destino puderam avistar os destroços de uma grande embarcação. Uma flâmula tremulava ao vento, alimentando a esperança de ainda encontrarem o náufrago. Estavam muito perto de alcançar o objetivo, mas assim que se aproximaram da ilha o tempo mudou repentinamente e ventos terríveis começaram a agitar o pequeno barco. O céu tingiu-se de negro, grandes estrondos percorriam os ares. Uma densa chuva começou a cair e naquele momento já parecia remota a chance de cumprir a missão.
– Precisamos recuar, barqueiro! – gritava o menino aterrorizado.
– Impossível, meu caro, o momento é esse. A maré logo baixará e por muito tempo será impossível chegar aqui, mesmo para o nosso pequeno barco. Precisamos de toda a força que tivermos. Necessito do seu auxílio!
A vida do menino começou a passar diante de seus olhos, ainda que longa ainda não fosse. Sentiu um enorme desejo de se esconder e de fechar os olhos; talvez a tormenta logo passasse e ele pudesse sobreviver e encontrar a sua tia. No entanto, imaginou como seria o encontro se dissesse a verdade; que num momento de grande necessidade abandonara o barqueiro à própria sorte. Não valia a pena… Muito se envergonharia de tal comportamento.
Então procurou afastar todos os pensamentos de covardia e obedeceu com muita atenção todas as ordens do barqueiro. Depois de algum tempo, que parecia interminável, o mar finalmente se acalmou e o barco chegou à ilha de destino. Ali já aguardava muito confiante o pescador perdido.
– Como podia ter tanta certeza de que nós viríamos? – inquiriu o garoto.
– Só há grandes desafios porque há almas suficientemente grandiosas para aceitá-los, rapaz! – respondeu o náufrago exultante.
Assim, retornaram os três para a cidade. Em reconhecimento pela coragem demonstrada, o barqueiro presenteou o menino com a madeira sagrada para que ele fizesse o seu próprio barco e também ensinou a técnica de construção e como se encomendar aos deuses propícios.
No reencontro com a tia, o rapaz e o barqueiro narraram todo o ocorrido. Ela suspirou com o olhar perdido:
– Meu menino saiu navegando pelas águas e nunca mais retornou…
– Mas estou aqui, tia querida… – o rapaz preocupou-se pelo estado de saúde dela.
– Não, o menino não regressou… – ela insistia. – Quem volta é um jovem que aprendeu a navegar pelas águas da existência, que se fez forte o suficiente para não se esconder das tempestades da vida, alguém que se senta no centro de sua barca e dirige-se ao seu destino desde ali. Um rapaz que aprendeu a enxergar além das ondas da matéria, com os olhos da alma. Que os deuses te bendigam e abençoem os seus caminhos, meu filho!
– Ninguém falaria de modo mais sensato! – considerou o barqueiro.
– Assim seja, minha tia! – respondeu o rapaz admirado pela lucidez dela.
Desse modo, teve fim a primeira jornada do aprendiz do barqueiro. E ele estava muito feliz por tanto ter aprendido até ali.
Autora: Maryanne Fargnoli Pfellstiker
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