Imagine o leitor que no ano de 2019 um experimento intergaláctico foi realizado pela sexta raça de uma “vaga” de humanidade mais adiantada. O experimento sócio antropológico envolvia uma máquina do tempo e o projeto consistia em realizar a abdução de um verdadeiro filósofo num planeta em estágio evolutivo de quinta raça e remetê-lo alguns milênios à frente, no mesmo planeta. O objetivo do projeto era verificar, por contraste temporal, a evolução moral da raça.
O planeta escolhido foi a nossa Terra. O filósofo seria um grego do século III a.C.. O país de realocação, o Brasil.
Os filósofos Sócrates, Platão e Aristóteles figuravam na lista dos mais cotados para o experimento. Por fim, optou-se por Aristóteles ao constatar que as fichas detalhadas de Sócrates e Platão, por motivos que não nos foi revelado, estavam classificadas como “Intocáveis” pelo Conselho de Principados da Grande Fraternidade.
Uma vez escolhido o filósofo, o plano era simples: retirar Aristóteles do ano de 325 a.C. e transportá-lo para os dias atuais, onde ficaria por algumas horas na cidade de São Paulo. Todos os diálogos travados entre o filósofo e os cidadãos seriam acompanhados e na volta, Aristóteles seria realocado para a mesma data de partida sem que seus compatriotas descem falta dele. Em seu retorno também seria decidido se seria necessário apagar a sua memória ou não.
Junto a Aristóteles foi destinado um acompanhante que conhecia bem o local. Tratava-se de um homem da sexta raça que aqui vivia há alguns séculos em missão sigilosa, exercendo o peculiar ofício de “Construtor”. A ele caberia suprir as necessidades materiais do filósofo, zelando por sua integridade física. Muito pouco foi dito ao filósofo:
— Aristóteles! Imagine que isto é um sonho. Você está sendo enviado ao futuro e terá um acompanhante. Aja naturalmente, faça sua pesquisa e aproveite o passeio.
Quando Aristóteles deu por si, vestia calça jeans, camiseta branca e tênis All Star.
— Presumo que você seja o meu condutor — disse Aristóteles, sorrindo ao ver ao seu lado um senhor de alma jovial.
— Elementar, meu caro Aristóteles.— disse o condutor. Eu me chamo Horácio. Você tem alguma pergunta?
— Tenho muitas, meu caro Horácio, afinal, sou filósofo. Que língua estranha é esta que estamos falando? E que lugar é este?
— Estamos falando o português, língua derivado do latim e este é um shopping, um centro comercial. Aqui se vende produtos para suprir as necessidades físicas, mentais e emocionais. Temos aqui muitos produtos da moda.
— Moda!? — disse o ancião, entusiasmado. Finalmente algo que conheço. Refere-se a um conceito matemático que define um padrão de preferência repetitivo. Pelas pessoas que circulam neste local posso perceber um apreço especial pelas vestes do corpo, tão coloridas e diversificadas. Também a julgar pela quantidade de sacolas, vejo uma preferência pelo excesso nas compras. Mas nada ainda posso dizer sobre a Virtude. Como andam as Virtudes por aqui, meu caro Horácio?
— Veja por você — disse gentilmente o condutor, dando início ao experimento.
— Olá, meus jovens — disse um Aristóteles modesto sem perder tempo ao interpelar um rapaz e sua namorada. — Sejam generosos com esse velho ancião e digam-me sem demora como anda a Virtude por aqui.
O casal riu, sem entender.
— Virtude moral, meus jovens. Aquelas qualidades humanas que figuram entre os moderados! A exata “mediania” entre dois extremos, a carência e o excesso. Temos muitos virtuosos por aqui?
— Não sei dizer, senhor — disse a menina em tom acanhado. — Aqui viemos para comprar, nos divertir. Para passar o tempo.
— Entendo, nobre dama. Estão a procurar a felicidade, que é o bem maior e a finalidade de todas as ações.
— Isso mesmo, senhor. Estamos aqui para nos divertir e sermos felizes.
— Neste caso, nobre dama, a Virtude deve estar por aqui em algum lugar fazendo o papel de “guia”, pois a felicidade é a atividade da alma guiada pela Virtude.
— Desconheço a presença de guias por aqui, meu senhor — disse a jovem, reflexiva e visivelmente admirada com a conversa. — Mas se o senhor quiser pode falar com um segurança. Eles sabem tudo sobre o shopping.
Horácio riu com a confusão, mas o velho filósofo não desistiu. Tratou de identificar um segurança e perguntou-lhe:
— Prezadíssimo segurança. Tu que és o Guardião da Ordem e foste devidamente recomendado por uma dama, diga-nos sem demora onde anda a Virtude?
O segurança surpreendido com a pergunta respondeu de pronto: — Senhor, posso dizer-lhe, com toda certeza que não temos essa loja neste shopping. Trata-se de uma nova marca da moda?
— Oh! Nobre Guardião — disse agora Aristóteles um tanto desapontado. — Que Platão não te ouças para não se arrepender de chamar “Guardiões” os melhores de sua República. A Virtude não é loja, tampouco um produto que possa ser vendido. Quanto a ela estar na moda, parece-me cada vez menos provável, a julgar pela sua resposta. Virtude é um excelente estado de consciência, uma excelente disposição moral que impulsiona o ser humano a melhor conduta.
O segurança nada entendeu.
— É meu caro Horácio. Pelo jeito aqui não é tão diferente da Grécia. A Virtude não parece estar na moda. Não vejo cartazes anunciando a Virtude, mas apenas propagando o excesso e a superficialidade. Em nome do verdadeiro progresso, talvez seja melhor demolir esse engenhoso centro comercial e instalar um obelisco com os seguintes dizeres:
Povo do futuro:
— Virtude é valor que se conquista, não se ganha.
Sai da moda e vem para a mediania.
— Mas não nos deixemos esvanecer, meu caro Horácio. Leve-nos, por favor, para as Academias, as escolas do saber. Certamente elas devem ter se multiplicado pelo mundo. Que melhor lugar para perguntar sobre a Virtude senão a casa onde seu estudo se aprofundou?!
— Olá, jovens acadêmicos — disse Aristóteles ao ver um grupo de universitários que discutiam arduamente. — O que podem me dizer sobre a Virtude moral?
— Mais um direitista para nos falar de moral — disse um jovem, visivelmente afetado e com cara de poucos amigos.
— O que queres dizer com direitista? — perguntou Aristóteles, estranhando o sentido da palavra e a ofensiva recepção.
— Não ligue para ele — falou agora uma bela moça em tom sarcástico. — É que o senhor guarda um ar de sabedoria e meu colega se revolta ao constatar que todo sábio é naturalmente de direita.
O jovem afetado bufou e voltou a falar: — afinal, és da direita ou da esquerda? És um conservador elitista ou companheiro de luta nas causas igualitárias?
— Luto para conservar o melhor de mim — disse Aristóteles. E esta luta me toma todo o tempo.
— Se lutas, então és a favor da revolução armada, senhor? — arguiu um outro acadêmico.
— Acho que não entenderam, jovens. Minha luta é interna e minha arma é a temperança.
— Falou, falou e não disse nada — bradou de novo a bela moça, agora visivelmente incomodada. — Afinal, és da direita ou da esquerda?
— Não tens ouvido para me ouvir, minha jovem. Que diferença faz ser “da direita” ou “da esquerda”, se não forem “da Virtude”?
E de fato ninguém respondeu ao velho, pois estavam todos surdos.
— Mataram a Virtude, meu caro Horácio, e não houve sequer um momento de luto. O mundo foi invadido por um materialismo sem fim. Que sonho triste, meu amigo, este para o qual vocês me trouxeram.
Horácio ficou enternecido com o velho filósofo. Andavam agora pelo parque Ibirapuera. Faltavam alguns minutos para a experiência se encerrar quando um rapaz altivo cumprimentou-os de bom grado.
Aristóteles encantou-se pela gentileza inesperada e logo replicou: — Olá rapaz. De onde provém toda esta amistosidade?
— Ela provém de onde todas as Virtudes provêm, meu senhor. Da Alma.
De imediato todos os pelos do ancião se eriçaram. O velho filósofo não acreditava no que acabara de ouvir e por isso não perdeu tempo.
— Se as Virtudes provêm da Alma, como disseste, meu jovem, então responda-me: — Nasceste com as Virtudes ou as conquistaste pela prática?
— Não tenho certeza, senhor — disse o rapaz, pensativo.
— Responda-me, então: — Todas as pessoas nascem com Alma?
— É o que me parece, senhor.
— E se todos têm Alma e a Virtude provém da Alma como dissestes, então todas as pessoas nascem virtuosas?
— Se seguirmos esse raciocínio, senhor, eu diria que sim, mas na prática não vejo muitos virtuosos na sociedade.
— Acaba de me dar um bom tema para estudo, meu jovem. E como tua amistosidade me faz lembrar meu amado filho, escreverei um manuscrito deste assunto intitulado Ética a Nicômaco.
— E eu adoraria lê-lo, meu senhor, pois embora eu viva a Virtude, hoje acabo de descobrir que não sou muito bom em discutir sobre ela.
— És melhor do que pensas, meu jovem. E não se preocupe, pois como você verá em meu manuscrito a virtude moral se conquista com a prática e não apenas conversando sobre ela.
— Acabou nosso tempo, disse Horácio.
— Adeus meu jovem. Devo agora acordar. Espero lembrar de nosso sublime diálogo.
Assim foi permitido que a memória de Aristóteles não fosse apagada, pois a divulgação de um conhecimento atemporal dependia desta conversa.
Muitos outros experimentos intergalácticos foram realizados, mas nenhum outro envolveu Aristóteles. Agora sua ficha detalhada figurava com o mesmo status dos seus mestres: “misteriosamente intocáveis”.
Autor: Leandro Guedes dos Santos
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