Algumas vezes, ao contemplar uma pintura, uma estátua, um templo em algum lugar distante… temos uma estranha sensação, uma mistura de admiração e respeito, uma sensação que não sabemos exatamente como defini-la pela diversidade de qualidades que a envolve.
INTRODUÇÃO
Os tratados de estética hindu e poética sânscrita estudaram este fenômeno e o denominam “rasa”, que significa “essência, sumo, prazer”; é a sensação da obra de arte, o sentimento que desperta. A obra de arte está iluminada e cheia de alma, que é o rasa.
As técnicas usadas na arte hindu são os Shilpa shastres, de onde derivavam as leis que o artista deveria seguir para não se desviar das regras tradicionais, criadoras do ritmo e da força vital que animavam a obra de arte. Eram apresentados em versículos mnemotécnicos, que os artesões sabiam de memória, davam medidas, formas, desenhos simbólicos e advertências severas para evitar que impregnassem os objetos sagrados com formas excêntricas ou de mau augúrio. O vínculo que se mantinha com essas normas não sufocava a contribuição individual do artista, que sabia interpretar, com seu toque particular, uma parte da arte sagrada. A disciplina que era imposta, para não realizar uma criação arbitrária e personalista, ensinava o equilíbrio e a clareza da expressão.
O “rasa” realiza-se quando o artista e quem se deleita entram em sintonia na transmissão da obra de arte, identificando-se um no outro, experimentando ambos um certo sentimento que não está ligado ao tempo nem ao espaço, transformando o particular em universal, e o profano em sagrado. Desse modo, um instante de gozo artístico se converia em Eternidade…
TEATRO, DANÇA E MÚSICA
Encontramos as origens do teatro indiano nos descobrimentos arqueológicos e nos testemunhos literários que ainda existem. Segundo o mito hindu, a arte do espetáculo foi inventada pelo senhor da origem do mundo, Brahma, que se dirigiu aos deuses e pediu que elaborassem um tipo de entretenimento instrutivo, e que ao mesmo tempo provocasse prazer aos ouvidos e aos olhos para que fosse acessível aos homens mais simples. Brahma obteve então material dos quatro Vedas, extraindo a palavra sagrada do Rigveda, a música do Samaveda, a mímica do Yajurveda e os sentimentos da Atharvaveda. Compilou-se assim um quinto Veda, o Natyaveda ou Veda da arte dramática, destinado a extasiar o gênero humano. Sobre isso H.P.Blavatsky nos fala: O segredo dos Vedas, o conhecimento sagrado, é impenetrável sem auxílio dos Brâhmanas. A parte dos Vedas escrita em versos é composta por mantras, hinos ou preces mágicas, cuja chave está nos Brâhmanas, escritos em prosa.
Depois do Natyaveda, realizou-se uma adaptação para uso dos mortais, obra concluída por Bharata, figura que, acredita-se, viveu nos primeiros séculos da era Cristã, o autor de Natyashastra, Bharata natya shastra ou Tratado da dança. Expõe os princípios fundamentais da representação cênica e de todas as artes afins, como o teatro, a mímica, a música e a expressão verbal. Os diferentes elementos dos movimentos da dança se chamam “karanas e angaharas”, e correspondem aos gestos dos braços, mãos, dedos, rosto, olhos, sobrancelhas, corpo, pernas e pés. Os artistas hindus recorriam a esses princípios na hora de plasmar as imagens divinas, com movimentos dançantes de uma agilidade e graciosidade etéreas, incomparáveis.
Surge então o teatro como o dom de Brahma e a arte da dança como o dom de Shiva, que são presenteados aos homens. Shiva ensinou a seu devoto Tandu a poderosa dança da manifestação e dissolução do Universo, que o deus executava continuamente e que a partir deste momento se conheceu como tandava. Tandu a transmitiu a Bharata que a difundiu entre os homens, enquanto que Parvati, cônjuge de Shiva, encarregava-se de ensinar as mulheres à realização da dança. Tais acontecimentos fizeram Shiva merecedor do título de Nataraja ou “Rei da Dança”. Um exemplo disso pode ser visto no Museu Guimet de Paris, onde há uma maravilhosa representação em bronze, século XI a.C, na qual Shiva está dançando esta dança cósmica, pisoteando o monstro da ignorância, rodeado das chamas da vida.
O Natyashastra distingue dois tipos de dança: um expressivo, chamado “abhinaya”, que representa a eterna luta entre demônios e deuses no coração do homem e que utiliza um rigoroso vocabulário de gestos, e outro mais puro chamado “nritta”, no qual o dançarino vive as próprias emoções através de movimentos e coreografias mais livres, onde desdobra as posições do corpo, a expressão das mãos, o movimento dos olhos e da cabeça, ao mesmo tempo que marca o ritmo com os pés. Mímica que procura evocar no espectador as emoções mais profundas da alma humana.
Os estilos mais antigos, dos quais possuímos numerosas representações, são o Bharatanatya e o Orissi. O ensinamento dessas danças era confiado aos homens, enquanto as mulheres eram encarregadas da execução. O Bharatanatya se inspirava nas danças desenvolvidas no Tamilnadu, executadas nos templos pelas devadasi, as “donzelas do deus”, jovens consagradas ao serviço ritual e instruídas na dança e em outras artes refinadas. A dança Orissi herdou as tradições da região da Orissa onde, no templo de Konarak e no de Puri, e em algumas construções sagradas de Bhubaneshvara, dançavam as mahari com tarefas semelhantes as das devadasi. Observa-se nas esculturas dos portais de Cidambaram e nos pavilhões de dança de Konarak, que foram imortalizadas de uma forma muito precisa, as principais posições da dança antiga, que estabeleceram um ponto de referência muito importante para os estudiosos e artistas que, no início do século XX, se dedicaram a recuperar essas danças, que estavam prestes a desaparecer.
A dança não estabelecia um fim em si mesmo, mas servia de meio para chegar a Divindade. Era ao mesmo tempo oração e oferenda, expressão da Beleza, do Ritmo e do Equilíbrio Cósmico. Nos textos tradicionais sublinha-se expressamente que ali, onde vão as mãos daquele que conta, deve segui-las o olhar, e ali onde dirige-se o olhar, que expressa os sentimentos, dirige-se o espírito, e quando a emoção se intensifica a ponto de dominar por completo a alma do dançarino e do espectador, então se atinge o prazer estético. Para a arte hindu, o valor do artista é medido tanto por sua capacidade para explicar os conteúdos universais da cultura que o nutriu, como o de converter-se num veículo de transmissão ética e estética.
Nos baixo-relevos que ainda resistem, as bailarinas estão acompanhadas por músicos, e seus instrumentos. Instrumentos que representam um acervo muito interessante para a história da música. O acompanhamento musical era formado pela vina (instrumento de corda, precursor da citara), pelo tambor, pelos címbalos e pelo harmônio; uma voz masculina ou feminina narrava, cantando o acontecimento histórico, que se imitava nos fragmentos da dança expressiva. A música era constituída por três elementos fundamentais: corte, “pulsação, execução”, que seria a “estrutura”, ou seja, o espaço no qual nasce e se desenvolve o ritmo e a melodia; o raga que vem da raiz ranj, “tingir, colorir”; já que colore o espírito humano de emoções e é portanto “melodia”, e finalmente o rasa, “essência” do prazer musical. A improvisação também é um aspecto importantíssimo da música indiana, era regulada por normas precisas que deram lugar aos raga e aos ragini, reagrupando-os em famílias e associando-se nas estações, as diferentes partes do dia e da noite e nos diferentes estados de ânimo. Segundo as tradições, a música hindu nasceu do Nada ou “Vibração Primordial”, sussurro projetado pelo Universo. Esta música apoiava-se nos hinos litúrgicos que se modulavam seguindo regras precisas contidas no Samaveda ou Veda dos cantos.
Os “mantras” são outro elemento importante dentro do ritmo e da música. Como foi dito anteriormente, são preces mágicas, palavras que evocam potências divinas. No livro Ísis sem Véu, H.P.Blavatsky nos dá mais informações: O Vàch ou espírito dos mantras é uma energia fonética cujas vibrações elevam outras análogas, de maior e mais oculta energia. Cada um desses poderes fonéticos está personificado por sua entidade correspondente no mundo dos espíritos, e quando são postos em ação, responderão a eles os espíritos benignos (deuses) ou os espíritos malignos (rakshasas).
PINTURA E ESCULTURA
Das pinturas antigas na Índia, restam apenas alguns afrescos. O clima, as guerras, as destruições por motivos religiosos e o tempo contribuíram para que desaparecessem. Esses afrescos que ainda existem pertencem às cavernas de Ajanta (século II a.C – VII d.C). Estiveram por mais de mil anos enterrados até que, por acaso, reapareceram em 1819. Os afrescos também seguiram as mesmas regras tradicionais que norteavam a escultura; são verdadeiramente admiráveis e considerados um dos principais centros artísticos.
A escultura indiana representa inúmeros aspectos da Deidade em suas distintas facetas. Não são muito freqüentes as representações de soberanos, dignatários e místicos. Um famoso exemplo disso está na estátua do rei Kanishka, da dinastia Kushana, conservada no Museu de Mathura.
As proporções das esculturas não correspondem a uma reprodução realista, mas sim à expressão de uma beleza celestial que não é a humana. A unidade de medida fundamental que se usava era a tala, palmo que correspondia à altura do rosto, desde o maxilar até a linha onde começam os cabelos. Na escultura, a beleza era considerada um veículo fundamental de elevação espiritual.
É a partir do século II d.C., quando começam a representar as esculturas de Buda com semblante humano, influência da arte helênica de Gandhara. Antes dessa época não havia imagens do Iluminado, porque os seguidores do Hinayana (a escola mais antiga do budismo) o consideravam como mestre supremo e não como divindade. De maneira mais contemporânea em Mathura, em Uttar Pradesh, representa-se o Buda como ser humano. Não se sabe com certeza qual das duas escolas foi a primeira a fazê-lo. Embora, o estilo de Mathura parece ser o que inspirou as representações das Tirthankara, os profetas jainistas e os Yaksha; enquanto o estilo de Gandhara foi influenciado pela arte helênica.
Aparece também outro elemento de destaque nessa arte: os “mudras” (gestos das mãos) que indicam os estados internos e posturas do Buda. A figura do Buda alcançou uma insuperável perfeição expressiva no período gupta (século IV – VI d.C); desaparecem as dobras rígidas, as vestimentas convertem-se num sutil véu; seus membros demonstram uma doçura lânguida e ondulada, acentuada pela tribhanga ou flexão do corpo numa espécie de “S” que brinca sobre um apoio acentuado do quadril.
EDUCAÇÃO DO ARTISTA
O artista hindu (escultor, pintor, arquiteto, etc.) era submetido a uma rigorosa disciplina espiritual. Exigia-se que, uma vez purificado, meditasse para visualizar a Divindade que deveria representar. A forma e os atributos do deus ou deusa deveriam aparecer no plano mental, ou os faria aos poucos, graças a sua intensa devoção. Quando o objeto de sua criação mental havia sido totalmente captado numa intuição contemplativa, então poderia fazer a tradução da imagem divina em todos seus planos sutis, através das formas plásticas materiais. Um artista deveria ser capaz de mergulhar num estado contemplativo e ver seu modelo no mundo espiritual, no reino dos Arquétipos universais.
Como diz a filósofa Delia Steinberg Guzmán: o artista é quem dá luz à obra de arte através da sua imaginação. Para isso necessita de mente ativa, capaz de captar, reproduzir e transformar as idéias em imagens estéticas, imaginação disciplinada e criadora… e inspiração ou poder intuitivo da imaginação.
A arte da Índia está profundamente ligada às formas da Natureza. O ritmo da arte plástica deve corresponder ao ritmo natural da vida, o que explica a falta de representações de movimento humano. Na arte hindu existe uma interpenetração do homem com a Natureza, como elemento básico e fundamental.
O artista é um verdadeiro representante, um intérprete da Natureza, um hábil mediador entre as Idéias Perfeitas e os homens. Esta é sua missão: despertar a alma de seus observadores e não só a admiração, Delia S. Guzmán.
Necessitamos de uma Nova Arte que nos una a uma mesma linguagem universal, na qual o tempo e o espaço parem e assim possamos comungar este instante de gozo artístico eterno.
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