Neste momento, contamos com o raro privilégio de oferecer a nossos leitores um conto, relato, mito, lenda ou tradição da antiga Mitologia brasileira.
Esta literatura, que podemos qualificar de estranha ao nosso gosto, insólita, plena de exotismo tão real como os contos do Amazonas (onde foi gerada) surpreende e sobressalta pela profundidade de seu pensamento, a especificidade de seu estilo e característica, ao mesmo tempo, as relações de seu pensamento analógico com as tradições rústicas de todas as partes do mundo.
É um conto. Uma lenda de antigas tribos do Amazonas, Katanichys e Pomarys, sobreviventes do capitalismo global, que ainda hoje, anualmente, se reunem em uma praia por 6 a 8 dias e ali os narradores de contos, os tuichahuas, tomam a palavra, depois de abolir a ilusória miragem que nos faz crer que o tempo existe e que estamos condenados ao trabalho extemporâneo.
Durante uma semana, entre danças, deuses de madeira, barro e palha e libações de cachiry, os tuichanas recriam a origem do mundo e as aventuras dos semideuses humanos.
João Barbosa Rodrigues resgatou grande parte desse valioso tesouro literário em sua obra O muyrakytan e os ídolos symbólicos (2 vols. Imprenta Nacional. Rio de Janeiro, 1899).
O conjunto dessas lendas narra as aventuras de Izy, também chamado Bokan, que é um personagem fundacional, sagrado para a memória desses povos, similar a Quetzalcostl ou Viracocha e a Cristo ou Budha. Infelizmente, jamais poderemos saber com exatidão se existiu ou não, qual foi sua obra, o alcance de seu valor histórico e de sua função social e cultural.
Este relato, A estirpe dos Yakamins, mostra um homem e uma mulher nascidos de um ovo de pássaro (como Castor e Pólux de Leda e o cisne-Zeus), o tema da morte inconsciente do pai (como Edipo e Layo) e as transformações mágicas em animais e constelações.
José Ramón Naranjo
Na hora da reunião, subiram todos ao telhado da casa. Bokan(1) disse que antes de dar-lhes as novas leis devia falar de sua origem, e assim o fez:
No começo do mundo havia um povo que tinha suas mulheres fechadas em uma espécie de convento. Uma delas, Dinary, fugiu esperando encontrar um marido.
Ao anoitecer durmiu na floresta e ao despertar no do dia seguinte, ouviu alguém falando. Era o filho de um chefe de outro povo, ele e seus companheiros a viram passar no dia de sua fuga e estavam a sua procura.
Vendo-os se aproximar, ela fingiu estar dormindo. Eles a encontraram. Ele era um belo garoto e apaixonou-se de imediato pela beleza de Dinary.
Ela o aceitou como marido e, seguido pela comitiva, ele a levou até a casa de seus pais. Porém, ao passar pela nascente de um rio, mandou que ela tomasse um banho e que se esfregasse com as folhas de uma planta do rio. Ele e sua comitiva também se banharam e quando saíram da água tornaram-se yakamins(2).
Passaram-se nove luas e Dinary vendo sua barriga crescer fez um ninho e pediu ao marido que lhe restituísse a forma humana antes de dar à luz.
Seu marido concordou e levou-a a um regato, deu-lhe uma taya(3) para esfregar-se. Assim, Dinary voltou a sua forma primitiva. Algum tempo depois deu à luz a dois belos filhos, uma menina e um menino. A menina tinha ao redor da cabeça uma grinalda de sete estrelas, o menino uma faixa em forma de cobra, também de estrelas, que rodeava seu corpo dos pés à cabeça.
Quando chegaram à idade das travessuras, notaram que viviam rodeados de yakamins e, ao questionar sua mãe, ela pediu para que nunca fizessem mal a nenhum desses pássaros.
Desde que nasceram, essas crianças dormiam num quarto escuro, onde seus pais nunca iam vê-los. Uma noite, Dinary foi vê-los e saiu sobressaltada, chamou seu marido para ver os filhos que estavam cobertos de estrelas brilhantes. Quando o marido chegou e viu aquela maravilha, desconfiou da fidelidade de sua mulher, supondo que as crianças não fossem suas.
Ele abandonou a esposa, fugiu com todos os yakamins e foi falar com o pajé a quem contou o que havia acontecido e perguntou se eram realmente seus filhos, cobertos de estrelas e sem ovos. O pajé explicou o que havia acontecido e ele voltou satisfeito.
Enquanto seu marido foi falar com o pajé, Dinary saiu para buscar alimentos, bem longe. As crianças estavam sozinhas. O menino, que tinha um arco e flechas, para distrair-se, começou a disparar em direção aos poucos yakamins que estavam ao redor da casa.
Depois de matá-los, viu chegar outros, mas de plumas brancas. O menino começou a disparar flechas uma por uma até matar todos.
Quando sua mãe chegou, ao ver sangue pelo terreno, interrogou as crianças, que contaram que havia aparecido uma revoada de yakamins de asas brancas(4) e que os tinham matado.
Dinary foi ver e comprovou que seu filho não só havia matado o próprio pai, mas também os parentes, que voltavam da consulta ao pajé.
Ela, ao querer ocultar de seus filhos sua origem yakamins, causou aquela desgraça. Vendo-se sozinha, saiu com os filhos em direção à aldeia de seus pais. Ao chegar a uma montanha, de onde avistava sua aldeia e a prisão da qual havia escapado, ficou aterrorizada com a idéia de ser novamente enclausurada.
Ao saber disso, seu filho disse que nada temesse, pois ele era forte o suficiente para salvá-la. Para provar, pegou uma pedra, da altura de três homens, e a jogou sobre a casa. Todos correram devido ao grande estrondo e viram as crianças que se aproximavam envoltas no brilho das estrelas.
Quando chegaram à aldeia, foram rodeados pelas pessoas, que não reconheceram a antiga Dinary. Pediram então hospedagem. O chefe os recebeu, dizendo que ficassem na casa enquanto colocava tudo em ordem. Então o menino lhe disse que também gostava de ver tudo em seu lugar, assim, ia devolver a pedra ao lugar de onde a havia tirado. Tomando a pedra, que estava meio enterrada, projetou-a até a montanha, todos fugiram com medo, inclusive as donzelas que estavam enclausuradas na casa.
Ali ficaram e as crianças cresceram. Pinon, o menino, foi pai de uma numerosa prole. Meênspuin, sua irmã, começou a sentir também desejo de casar-se. Pinon, ao saber disso, levou sua irmã pela margem de um rio, dizendo a sua mãe que iria curá-la desse desejo. Demoraram para voltar. No quarto dia, Dinary saiu em busca de seus filhos e nunca mais apareceu. Dizem que foi levada para o fundo do rio pela mãe dos peixes.
Pinon, zeloso pela honra de sua irmã, foi à serra Itatininga, ali fez um grande gancho que pendeu do céu e por ele subiu levando sua irmã, que ficou no país das estrelas como Ceuicy(5).
Notas:
(1) Bokan é um personagem legendário, eixo de uma saga de narracões, e narrador, por sua vez de outras lendas e contos. É um personagem fundacional similar a Quetzalcoatl ou Viracocha, do âmbito da mais antiga mitologia brasileira. Não podemos confirmar se houve ou não uma figura histórica detrás da lenda (Nota dol Editor.)
(2) Espécie de pássaro.
(3) Erva da família das aráceas.
(4) No Amazonas há três espécies de yakamins: os de plumas brancas, de plumas verdes e de plumas cinzentas.
(5) As Pleiades.