A ilha da esperança

artigo3-ed37Uma viagem pelo tempo, até uma ilha verde, da costa até a montanha: Irlanda. Debaixo do círculo dourado perfeito que forma o sol em seu cinzento céu, encontra-se um amplo vale rodeado de límpidos rios. Aos pés dos frondosos bosques, tudo parece ter adquirido a serenidade da beleza estival; brisas quentes arrastam mil partículas de pólen e pequenos insetos para a atmosfera. Vê-se à distancia, uma estreita coluna de fumaça procedente de um pequeno povoado. Parece uma comunidade de camponeses, se não fosse por uma estreita e alta torre que se destaca dentro da modesta paliçada. Trata-se de uma localização religiosa.

Entremos em uma das pequenas casas de barro, palha e arbustos que se distribuem por aqui e acolá. Um jovem de vestimenta rudimentar, e panos marrom como hábito, está sentado em uma banqueta e parece escrever sobre uma rústica mesa feita de troncos. Como único complemento para mobiliar o barracão, há uma espécie de cama, feita de forragem e uma grande pele curtida como colcha. Uma velha bolsa de viagem guarda ordenadamente os escassos pertences, e sobre a mesa amontoam-se manuscritos, códices e livros.

Quem é essa pessoa? Dedica-se a uma tarefa de pesquisa e preservação de ensinamentos clássicos numa época que se tornava obscura para o continente europeu (s. V-VI). A Europa precipita-se na Idade Média, e a Irlanda segue ilhada no oceano Atlântico. Surge a pirataria por toda a costa britânica, e os irlandeses, que contam com experiência nisso, prontamente utilizaram seus hábeis barcos recobertos de pele para dedicar-se ao negócio da escravidão de um povoado a outro. Novos tempos trazem mudanças, e a Irlanda, como um ser que troca de pele, iria adaptar-se às necessidades desse momento. Surge então o personagem de São Patrício, patrono do país, um religioso Irlandês que aportaria um aspecto definitivamente pagão e rebelde aos olhos do bispado. Inúmeros hagiógrafos atribuem a São Patrício outra procedência e característica. Porém, a única coisa que sabemos, com certeza, são as mudanças realizadas durante sua intervenção: encontrou paralelismo e igualdades básicas nas raízes de ambas as crenças, o cristianismo e os velhos cultos. Graças a ele não aconteceu uma imposição sangrenta. Os irlandeses, segundo Patrício, seus amados filhos guerreiros, contavam nesse momento com uma cultura iletrada, com chefes e clãs em contínuo conflito, seminômades, suas riquezas baseavam- -se principalmente na criação de gado.

Os ensinamentos de Patrício iriam enraizar-se fortemente nos corações irlandeses, que desde antigamente, caracterizavam- se por ser profundos crentes. Sua imagem do mundo consistia em um Todo essencialmente insubstancial; tudo fluía e mudava como as ondas do sagrado rio Boyne. Um universo indivisível e mágico conspirava para o bem da Humanidade, ensinado com o amor e o sofrimento da batalha. Tudo está dentro de Deus, e a Natureza contém, por sua vez, o incognoscível. O homem integra- -se em um mundo cheio de Magia, e mediante a Natureza, põe-se em contato com as realidades superiores; podia-se invocar também os elementos, o mar, os pássaros, as árvores… O mundo era um mistério carregado de mensagens divinas que ajudavam o homem a compreender. A concepção tripartida de Deus, a Natureza e o Homem estão refletidos, de certa forma, no Triskell, que adornava praticamente todos os templos pré- -históricos do país. Patrício usaria esse símbolo para explicar aos nativos a ideia da trindade cristã (Pai, Filho e Espírito Santo) refletida, posteriormente, no trevo de três folhas, um dos símbolos atuais do país.

Com essa filosofia introspectiva, ainda que carente de fronteiras sociopolíticas ou religiosas, São Patrício não limitou a vida sacramental irlandesa, ao modo da liturgia da Igreja do continente, mas estava aberta a todo Universo criado. Deus não era um Deus de pecados e medo, era parte do homem e esse, por sua vez, um sacrifício do primeiro, uma lágrima do sol. Sem esquecer-se da peculiaridade ou identidade própria, encontraram certa ordem comum universal. Década após década reduziam-se a escravidão e os conflitos armados. O que nunca se erradicou foram as influências pagãs antigas que, encontrando cumplicidade, continuaram por séculos. Durante um século e meio (por volta do V ao final do VI), não existia comunicação formal entre Roma e Irlanda. Na verdade, Roma havia mudado por duas vezes os cálculos das celebrações no calendário e a Irlanda manteve o sistema antigo (astrológico) para realizar seus ritos religiosos.

Em pleno florescimento, apareceram os chamados Mártires Verdes (também chegados em grande número de outros países) que, abandonando os prazeres e comodidades da sociedade, retiravam- -se para lugares isolados para estudar, combatendo suas debilidades físicas e psíquicas, e para aproximar-se mais de Deus. Surgiam centros religiosos que se converteram nos primeiros núcleos de povoados, prosperidade, arte e ensinamentos. Nessas cidades-estado participavam naturalmente as mulheres, chegando a existir abadessas e centros mistos. A partir de um templo central, rodeado de pequenas cabanas, começa um perseverante trabalho de pesquisa.

Os estudantes, tanto em suas casas como ao ar livre, copiavam e aprendiam todo tipo de texto clássico. Começavam a chegar milhares de estudantes ingleses, do resto da Europa e inclusive de muito mais longe. Seguindo sua tradicional hospitalidade, nunca recusavam ninguém, fossem pessoas comuns ou nobres, de uma ou outra crença. Um historiador daquela época, Beda, o venerável, deixou escrito: “Muitos dos nobres da nação inglesa, assim como outros homens, também têm ido até lá (a Irlanda), abandonando sua ilha nativa pelo aprendizado sagrado, por uma vida mais rígida. E, prontamente, alguns deles dedicaram- -se fielmente à vida monástica; outros se alegraram mais em entregar-se aos estudos, indo de sala em sala, de um mestre a outro. Os irlandeses receberam todos de bom grado, deram-lhes alimentos, sem cobrar nada, assim como livros para seus estudos e ensinamentos.