Algo que pode ser observado no presente momento histórico é uma natural admiração pelas antigas civilizações, que faz alguns anos, tem tomado força e se reflete nos vários romances e filmes de contexto históricos. Trata-se de uma admiração inspiradora que pode levar as pessoas a sonhar e trabalhar em prol de um mundo novo, um mundo onde grandes mestres possam governar com sua sabedoria, guiando-nos para as margens do desenvolvimento humano e fazendo-nos adentrar em nossa própria espiritualidade.
Mas estudando a história, nos deparamos, às vezes, com momentos de decadência, onde estas grandes civilizações começam a ruir, e toda sua cultura começa a ser esquecida ou destruída. Aprendemos então que a história, ao contrário do que se ensinou por muito tempo, é cíclica e passa por altos e baixos, momentos de ouro e de ferro, luz e trevas numa constante que parece nunca variar.
Talvez por proximidade histórica, a Idade Média, seja um dos momentos de decadência que nos parece mais vivo e que trouxe até nossa época inúmeras influências.
O estudo da tentativa de nossos antepassados em fazer reviver a cultura clássica torna-se então uma de nossas preferências, e o que conhecemos como Renascimento Italiano, passa a ser um referencial, onde começamos a beber não só dos elementos culturais dessa época, mas também dos elementos filosóficos e mágicos que ali surgiram.
Porém, em pesquisas sobre as civilizações antigas, na busca por culturas ricas, por culturas que tenham tido alguma influência relevante na história da humanidade, é natural esbarrarmos com uma civilização intitulada hoje Suméria, considerada por muitos como a primeira civilização.
Mãe e senhora do que conhecemos como Mesopotâmia, esta civilização possui algo muito importante para nos ensinar. Que os ciclos históricos existem não temos dúvidas, mas como a história se repete, como estes ciclos se interpõem, isso é algo que só podemos aprender com o tempo.
Com certeza o grande fascínio da Suméria não está apenas na importância de seus inventos nem em sua posição de mãe das civilizações. Mais que isso, a verdadeira fascinação por esta civilização surge justamente ao saber que há mais de quatro mil anos existiram ao sul da Mesopotâmia, personagens, que numa época de decadência, fomentaram um resgate cultural, dando origem a um movimento renascentista, cujos moldes se assemelham, de forma quase idêntica, ao nosso Renascimento europeu.
Pequena Introdução à História da Suméria
A Suméria (em sua língua nativa Ki En Gir) é considerada uma das primeiras civilizações da humanidade, senão a primeira, logicamente considerando-se a historiografia atual, que pouco fala sobre civilizações anteriores à mesopotâmica. Floresceu onde hoje se localiza o Iraque, ao sul da Mesopotâmia, entre os rios Tigre e Eufrates, próximo ao Golfo Pérsico.
De acordo com as evidências arqueológicas, a Suméria teve sua origem cerca de cinco mil anos antes de Cristo. Entre 3.500 e 3.000 a.C. houve um florescimento cultural muito grande e esta civilização passou a exercer influências nas culturas circundantes, culminando na dinastia Acádia, fundada aproximadamente em 2.340 a.C. por Sargo ou Sargão I.
Em 2.000 a.C., a Suméria começou a entrar em declínio, sendo absorvida pela Babilônia e pela Assíria.
Um pouco mais de história
O nome Sumério foi adotado posteriormente pelos acádios, em lugar do termo com o qual se autodenominavam os sumérios: sag-gi-ga, que significa “o povo de cabeças negras”. O nome de sua terra era Ki-en-gi, e significa “o lugar dos senhores civilizados”.
Donos de uma língua, cultura e aparência próprias, os povos que deram origem à Suméria parecem então não ser autóctones, mas uma corrente de migração, que os historiadores até hoje não conseguiram compreender de onde surgiu e em qual momento esses eventos ocorreram.
Os momentos da decadência
Um dos momentos de maior esplendor da Suméria foi justamente o período da dinastia acádia, fundada por Sargão. Naram-Sin, um de seus netos, vai ser o herdeiro do trono em um momento de guerras e invasões. Quando Naram-Sin morre, o império está ameaçado de todos os lados, mas o seu reinado de 37 anos tinha lhe permitido firmar um estilo novo de existência para toda a Mesopotâmia.
Sharkali-Shari, seu filho, vai tentar continuar a obra do pai, mas a pressão era tal nas fronteiras orientais que ele teve que aceitar a secessão do Elam. A campanha contra os Elamitas acabava de terminar quando graves desordens irromperam de uma ponta a outra do império. Tribos nômades amoritas, surgidas dos desertos da Siria, assolavam as províncias ocidentais. Sharkali-Shari repeliu-as para além da montanha de Bishri, depois de ter exterminado um grande número na batalha de Basar. Mas apenas extinta esta fogueira ocidental, o soberano era de novo constrangido a correr à outra fronteira, a do nordeste, para socorrer o seu governador: os gutis multiplicavam as incursões devastadoras. Sharkali-Shari conseguiu duas vitórias sobre os inimigos e fez prisioneiro um rei do Gutium. Mas as invasões bárbaras multiplicaram-se e os gutis dominaram a Mesopotâmia.
Por volta de 2.120, os gutis não representavam a força devastadora que encarnavam um século antes, tinham se fundido na população conquistada, a ponto de seu rei não ter mais que um poder nominal.
Foi o momento em que um soberano de Uruk, Utu-Heal (2123-2113), digno continuador de Eanatum, escolheu para brandir a bandeira mesopotâmica e expulsar o ocupante. Atacou o rei guti Tirigan e infligiu-lhe uma memorável derrota, levando-o prisioneiro para Uruk, em festa.
A Renascença Suméria
Alguns anos antes da expulsão dos gutis, uma cidade gozava curiosamente de um status especial: Lagash. No momento em que se extinguia a realeza em Acad e enquanto outras cidades ainda gemiam sob o julgo guti, Lagash mantinha relações comerciais longínquas e aparentemente sem obstáculos.
Foi em 2.155 que o fundador de uma nova dinastia subiu ao poder nesta cidade. Chamava-se Ur-Bawa. Nas inscrições que se encontram dele, ressalta-se que utilizava o título de príncipe e não de rei e que se entregava exclusivamente à construção de templos. Estas duas características serão encontradas também nos seus sucessores. Estaríamos então na presença de uma dinastia de ensis, quer dizer, sacerdotes administradores pouco atraídos pela guerra e pelas conquistas.
Três genros de Ur-Bawa lhe sucederam: Urgar, Nammahni e sobretudo Gudéia (2141-2122), um dos príncipes mais renomados da Suméria.
Como os seus predecessores, Gudéia teve uma atividade militar reduzida, uma única expedição punitiva aos Elamitas. Conta um escriba da época que Gudéia teve um sonho com o deus Ningursu, o deus águia, e este lhe teria dado a ordem de reconstruir o seu templo. Gudéia não poupou esforços para cumprir a ordem divina. Lançou seus negociantes aos quatro cantos do mundo para comprar madeira de cedro e pedras para construção, ouro, cobre, diorito e outras matérias preciosas, bem como para recrutar mão de obra.
O curioso é perceber que enquanto outras cidades sumérias se levantavam das penosas cobranças gutis, Lagash transbordava riquezas. Estas riquezas foram usadas exclusivamente para fins religiosos, e servindo aos deuses, os chefes de Lagash deram ocasião aos seus artistas para levarem a arte suméria a um nível jamais atingido até então e que vai provocar, num movimento cultural sem procedentes, o que se chama a Renascença Suméria.
Gudéia vai ser lembrado então como um príncipe santo ou iluminado, que provocou e continua provocando nas pessoas, no mínimo, um sentimento de simpatia. Algumas inscrições da época nos remetem a isso:
“Como um jovem que renova a sua casa, ele não pensava em nenhum outro prazer, como uma vaca que volta os olhos para seu bezerro, ele dedicava todo o seu amor ao seu templo; como um homem ocupado, ele nunca se cansava de ir e vir”…
“Gudéia fez brilhar o templo de Ningursu como o Sol no meio das estrelas. Tal como uma montanha de lapis-lazuli ele o construiu; tal como uma montanha de mármore brilhante ele o entregou aos olhares da admiração…”
Outros textos nos remeterão ao senso de justiça que possuía Gudéia, bem como a diversos atributos e qualidades.
Depois de Gudéia, o seu filho Ur-Ninirsu, e depois o seu neto Pirig-Me, continuaram a obra. Mas não por muito tempo. Uma expedição elamita por volta de 2.100 destruiu para sempre a cidade de Lagash de tal forma que, quatro milênios depois, os pesquisadores caíram imediatamente sobre a camada gudeiana: ninguém nunca tentou erguer as ruínas…
A Renascença Suméria iniciada em Lagash aparece-nos como o pressentimento que teriam tido os sumérios de seu fim próximo. O povo da baixa Mesopotâmia não parece animado por outra paixão que não seja ressuscitar o seu antigo esplendor. Conseguirão, mas não saberão salvaguardar de forma durável a sua nova independência, face aos inimigos de sempre: os Elamitas do leste e os nômades do oeste.
Gudéia, um Verdadeiro Mecenas
Se o período sargônico foi pobre na grande estatuária, o que se seguiu à invasão gutia revela-se de uma excepcional riqueza: a Renascença Suméria sob a III dinastia de Ur levou, tanto as realizações arquitetônicas, quanto a arte escultórica, a um nível jamais atingido…
Mas a riqueza da estatuária terá sido praticamente toda devida a um só homem, do qual já falamos: Gudéia. Este soberano foi um apaixonado por estátuas, mandando esculpir um grande número delas para os templos e palácios. No total, a sua coleção não conta menos de 30 grandes estátuas de uma realização inigualável. É em Lagash, entre 2050 e 2030 que a arte mesopotâmica, depois de um milênio de buscas, atingiu sua plena força de expressão. Com o recuo do tempo tem-se a impressão de que todos os esforços das gerações anteriores tenderam para um único fim: permitir aos geniais mestres de Lagash fazer explodir os limites da Arte.
As estátuas de Gudéia foram executadas em diorito verde escuro, ou algumas vezes em dolerito, ambas pedras muito duras. Inspirados por um fervor religioso forte e simples, os cinzéis souberam conferir uma majestade serena. Ficamos confundidos diante da sua segurança de traço.
Quer esteja representado de pé ou sentado, Gudéia tem sempre, exceto uma vez, as mãos unidas num gesto de adoração e de oração, cuja intensidade é tal que, apesar das destruições, o gesto das mãos servem para sugerir uma devoção e uma humildade desarmadoras.
Homem de paz e de fé, tal foi esse mecenas, cujo gosto requintado e paixão pelo retrato tornaram possíveis essa arte perfeita, há mais de quatro mil anos.
Não seria difícil fazer mais descrições sobre Gudéia e seu renascimento, mas apenas descrições, pois os fatos históricos escapam por entre nossos dedos, fazendo com que a maior parte do que possamos compreender sobre esse príncipe e sua época, fiquem à mercê de nossa imaginação, ou de nossa intuição.
Símbolos, como o caduceu de Mercúrio, foram encontrados nas taças de sacrifício de Gudéia, bem como outros símbolos e deuses, que não são de um império nem de outro, mas da humanidade…
O que nos ensina Gudéia e todos os senhores de Lagash? O que podemos aprender com estes tão antigos personagens? Com certeza, há muito que aprender. Principalmente, quando nos remetemos aos nossos conceitos de cultura e de civilização. Um império é fruto de um processo histórico e em sua decadência há sempre um renascimento, uma tentativa de resgatar e manter a cultura, de projetá-la para o futuro. Os mestres europeus cumpriram seu papel no Renascimento, que tão bem conhecemos. Os mestres de Lagash também cumpriram seu papel. Também nós cumpriremos o nosso, revivendo a cultura e os valores e projetando-nos ao futuro? É o mínimo que podemos fazer.
Em algum lugar desse Universo, o brilho do olhar de Gudéia, e de todos os seus seguidores, nos inspira a mais uma vez vivermos o Renascimento!