Desde que os pré-socráticos inauguraram na Grécia Antiga o que conceituamos como Filosofia Ocidental, um tema permeou a atuação da grande maioria dos filósofos: o conhecimento. Na verdade, este é um tema que sempre esteve presente na história da Filosofia, tanto ocidental quanto oriental. Sem dúvida, a Teoria do Conhecimento é um importante aporte das Escolas de Filosofia, que auxiliam o entendimento desse assunto. No ocidente, é possível destacar o trabalho de Platão, na Grécia, e no oriente o de Sankaracharya, na Índia, dois renomados filósofos que podem ser considerados como grandes compiladores da cultura filosófica das civilizações em que estiveram presentes.
Partindo do princípio de que a Filosofia sempre teve como objetivo principal o desenvolvimento do ser humano, a questão do conhecimento é um dos pontos principais para promovê-lo. Em relação ao desenvolvimento humano – ou sabedoria humana – e da evolução humana, que advém dessa sabedoria, é fundamental que o indivíduo compreenda que o processo depende dele, ou seja, cada um deve conhecer as coisas por si mesmo. Ninguém pode fazer com que o indivíduo se desenvolva, mas educá-lo para tal.
Se por um lado, a Sabedoria depende do próprio homem. Por outro, na Tradição das Escolas de Filosofia, o trabalho mostra o caminho para que ele, por si próprio, adquira tão almejada Sabedoria.
É através da Teoria do Conhecimento que temos reais condições de validar ou não uma determinada teoria. O ser humano, com essa ferramenta, pode se localizar, ou seja, validar ou não uma suposição e saber em que lugar ela se encontra em relação à Verdade. Portanto, a Filosofia pode não somente estimular o desenvolvimento científico, como também contribuir tanto para a validação do processo quanto para o seu crescimento em profundidade e amplitude.
Além de auxiliar a ciência, a Teoria do Conhecimento pode também contribuir para o desenvolvimento de outras áreas da cultura humana, como a artística, a política, a filosófica ou até mesmo a religiosa. Hoje a ciência tem primazia em termos culturais, mas devemos lembrar que os seres humanos, em função de suas diferentes vocações, buscam o conhecimento da verdade por diversas vias, expressas em suas profissões ou em coisas que gostam de fazer.
O homem deveria sempre extrair algo de suas vivências que o tornasse mais sábio, que o aproximasse da verdade, que o fizesse conhecer mais a Natureza e por conseqüência a si mesmo e com isso também modificar o seu comportamento, visto que agora, de posse de um conhecimento real, ou aproximado, de alguma coisa, já não se encontra mais na posição em que estava. Trata-se de um conhecimento sobre a Natureza e das coisas como realmente são. Uns terão mais facilidade de chegar a isso pela prática educacional, outros por um trabalho artístico ou de pesquisa científica, e outros ainda por um processo de liderança de outras pessoas, por exemplo.
A Teoria do Conhecimento é utilizada para acelerar esse processo. Seria algo mais sofisticado do que o processo de tentativa e erro e que projeta o posicionamento do ser humano para longe de suas opiniões, que por sua vez são totalmente influenciadas por questões culturais, interesses e paixões. O verdadeiro conhecimento está em um patamar “acima” do mundo das opiniões e das sensações, e pode ser acessado pelo ser humano através da aplicação de técnicas e do exercício de capacidades e sentidos, que hoje não são comumente conhecidos e desenvolvidos.
Para as Escolas de Filosofia, uma das bases do conhecimento é o princípio da dualidade das coisas. Os filósofos gregos, por exemplo, insistiram nisso. Para eles, tudo o que está manifestado e que, portanto, é temporal, é na verdade um reflexo de algo atemporal. Em resumo, os filósofos gregos defendiam que só podemos conhecer alguma coisa no momento em que tivermos contato com o seu “ser” ou “ente” (na denominação de Parmênides) – visto que o primeiro é real, ao passo que seu reflexo (manifestação material) é ilusório e temporário. Sócrates, por exemplo, afirmava que conhecer é chegar à idéia como essência verdadeira de algo.
As “Teorias do Conhecimento” expõem o caminho a ser seguido até se alcançar a Sabedoria. Para os filósofos que trataram do assunto, a multiplicidade das opiniões e das sensações não pode ser considerada como conhecimento. Na obra “Teeteto”, de Platão, identificamos várias hipóteses sobre a Teoria do Conhecimento, sendo impossível tomá-las como verdadeiras. No diálogo, um dos personagens, Teeteto, argumenta que sensação e conhecimento são a mesma coisa. Após cuidadosa análise por parte de Sócrates, esta idéia é descartada. O que aparece na sensação? A mudança incessante. Assim, nunca se poderá dizer de alguma coisa o que ela é efetivamente, mesmo porque em termos rigorosos, nem sequer podemos dizer que ela “é”, mas apenas que ela “se torna” isso ou aquilo, sem cessar, pois essa é uma das características da natureza de tudo o que é manifestado.
A sensação, como referencial, além de depender das condições variáveis do corpo daquele que sente ou percebe, também se altera em função da variação ou dos movimentos que acontecem no objeto sentido ou percebido. O mesmo acontece com a opinião, cuja marca é a dependência tanto da variação das sensações individuais como da variação de testemunhos, que nos fazem conhecer alguma coisa apenas por ouvir dizer.
Em última instância, conhecer significa chegar à verdadeira essência do que se procura, saber sobre o objeto do conhecimento, definindo sua essência. O termo grego ousia (essência) significa o ser, a realidade (no latim, essentia). A essência de qualquer coisa é algo universal, por exemplo, a beleza de todas as coisas belas ou a bondade de todas as coisas boas.
Para aprofundar um pouco mais o tema, serão expostas aqui as colocações de Platão. Em seu favor pesa o fato da grande influência que teve na História da Filosofia e de termos acesso ao que ele escreveu, ou seja, as obras que falam sobre o assunto não foram perdidas. Além disso, há o fato de sua obra ser uma compilação da História da Filosofia na Magna Grécia.
A Proporção do Conhecimento Segundo Platão
Platão conceitua as duas realidades (a “visível” e a “invisível”) como “mundo visível” e “mundo inteligível”. O que aqui exporemos baseia-se em suas obras “A República” e “Menon”.
Platão associa a Teoria do Conhecimento ao Mito da Caverna, uma de suas mais conhecidas e valiosas contribuições. Trata-se da apresentação de uma parábola milenar de vasto e profundo significado, o qual está exposto no livro VII da República.
Esse mito refere-se ao problema, fixado principalmente pelo filósofo grego Parmênides, sobre o “espírito e a matéria”. Desde que foi estabelecido, muitos foram os filósofos que se debruçaram sobre ele, tentando esmiuçá-lo e apresentá-lo da melhor forma possível. Mas talvez nenhum deles tenha sido tão bem sucedido quanto Platão. É certo que o mérito não está baseado somente na genialidade de Platão, mas também no método que utiliza para isso, que é o mito.
O mito tem várias propriedades, é um dos brilhantes sistemas utilizados nas Escolas de Filosofia. Sem deixar de ser racional, possui alguns elementos que têm a propriedade de despertar no homem certos aspectos que estão além de sua estrita capacidade de raciocinar. Definitivamente, não estamos diante de um conto para crianças, mas de uma idéia explicada sob forma simbólica. Portanto, o mito fala-nos de uma verdade com linguagem simbólica e essa linguagem apresenta notáveis vantagens: é suficientemente rica, ampla e plástica para que dentro desse simbolismo cada qual capte o que pode assimilar. Perante o Mito ninguém permanece “em branco”, enquanto que diante de uma explicação racional, sim. Por isso Platão recorre ao mito quando tem que explicar elementos tão sutis que não se encaixam na capacidade mental humana. Podemos considerá-lo um ensinamento personalizado, pois cada um vai captar aquilo que lhe for possível. À medida que for estudado, outros elementos do mito virão à tona, elementos que não haviam sido assimilados anteriormente. Por exemplo, Platão apresenta o Mito da Caverna com muitos detalhes, e apesar de, num primeiro momento, não conseguirmos assimilar e entender cada detalhe, não ficaremos sem entender sua idéia principal.
Em síntese, Platão propõe no Mito da Caverna que imaginemos uma caverna (algo parecido com um cinema moderno), onde estão muitos homens acorrentados às suas cadeiras, de frente para uma parede que serve de tela. Atrás há um feixe de luz que é constantemente atravessado por portadores de vários objetos, uns animados e outros inanimados, que projetam suas sombras sobre a tela. Se um dos espectadores conseguisse escapar de suas correntes e olhar para trás, contemplando diretamente os objetos e seus portadores, ficaria desconsertado.
Mas se a audácia ou outra razão o levasse ao mundo exterior, de onde entra o feixe de luz, recuaria espantado, julgando-se cego. Se o forçássemos a ficar neste mundo exterior que o desconserta e cega, clamaria para que o levassem de volta à caverna, onde podia ver e ouvir. Platão diz então, que este homem enlouqueceria se não o habituássemos, pouco a pouco, à luz e aos objetos exteriores. Por fim, ele chegaria à conclusão de que a luz do Sol é a causa indireta das ilusões da caverna e descobriria que não eram mais do que sombras e ecos. Esse conhecimento iria torná-lo profundamente feliz e, daí em diante, não desejaria mais voltar à escuridão.
Mas, se por amor aos seus semelhantes, ele decidisse voltar, a princípio distinguiria muito pouco ou nada nessa penumbra. Seus olhos habituados à luz plena teriam que se readaptar. Logo, explicaria aos seus companheiros os enganos que sofrem ao tomarem as sombras e ecos por seres e vozes reais. Entretanto, os acorrentados, julgando-o louco, tentariam, se possível, castigá-lo por tais supostas mentiras. Segundo explica Platão no citado fragmento, o liberto é aquele que, por suas elevadas aspirações, inteligência e audácia pessoal, alcançou o Real, a consciência desperta.
Esse mito responde à estrutura da realidade. Existe uma realidade sensível, que é a do mundo que somos capazes de perceber, e a realidade Ideal que é a do Mundo das Idéias. A caverna representa o mundo sensível e as sombras que se vêem no fundo da caverna representam as coisas, ou seja, os objetos que podemos apreciar através dos sentidos neste mundo material, não são as Idéias, não são os Entes em si, mas as sombras destas Idéias. O mundo exterior à Caverna é o mundo verdadeiro, o mundo inteligível ou Mundo das Idéias Puras. O que se vê no exterior, segundo Platão, constituem as Idéias e os objetos reais que o homem que sai da Caverna pode apreciar.
O tema do Mito da Caverna é a essência da filosofia platônica, pois essa filosofia profunda que Platão pretende estabelecer não pode definir-se racionalmente sem buscar o apoio do mito.
Platão deixa claro que a essência da ação humana é o trabalho para sair da Caverna, sendo a Teoria do Conhecimento a ferramenta para se atingir esse objetivo. Da mesma forma que seu mestre Sócrates, promove que o foco das Escolas de Filosofia se fixe nesse ponto.
Para dar prosseguimento ao que está sendo exposto, alguns elementos do Mito da Caverna nos interessam em particular: a luz que vem de fora da caverna, bem como os objetos e as sombras que ela projeta em suas paredes. Lembramos que, para Platão, conseguimos apenas ver as sombras (e não os objetos ou a luz), por estarmos acorrentados.
Passando para a Teoria do Conhecimento, Platão propõe que imaginemos uma linha cortada em duas partes desiguais, segundo uma determinada proporção. Uma corresponde ao mundo visível e a outra, ao mundo inteligível. Cada uma dessas partes também seria dividida em duas partes, segundo a mesma proporção. Assim podemos representar o que propõe Platão na figura a seguir, em que conceituaremos cada “fronteira” como uma letra: A, A’, B, B’ e B’’. Apesar dos seguimentos não terem o mesmo tamanho, os representaremos igualmente, pois Platão não registrou qual seria a proporção que definiria o tamanho de cada um deles.
Figura 1: Representação gráfica da Teoria do Conhecimento de Platão.
Como resultado, obtemos quatro segmentos (dois no Mundo Sensível e dois no Mundo Inteligível), conforme a especificação a seguir:
* A-A’ – Segmento da Opinião;
* A’-B – Segmento da Reta Opinião;
* B-B’ – Segmento do Conhecimento;
* B’-B’’ – Segmento da Sabedoria.
Esse seria então o caminho a ser percorrido pelo ser humano para alcançar a sabedoria. Um caminho que tem como segmento mais desqualificado a opinião e o mais qualificado a sabedoria.
O primeiro segmento, da Opinião, é o das imagens representadas através das sombras. Caracteriza-se pela opinião que temos sobre as coisas, em todos os âmbitos da vida humana, sejam objetos ou situações. Baseia-se nos preconceitos que possuímos. Diante de qualquer situação pensamos de forma vulgar, deixando-nos levar pelo nosso temperamento. Em nossos pensamentos muitas vezes está presente a inveja, o ciúme, a cólera, etc. Emitimos então um pensamento lapidado por essas paixões ou instintos, enfim, por meras opiniões. A maioria das pessoas vive dessa forma, consideramos como verdade o que aparece em nossos pensamentos e agimos de acordo com eles. Portanto, este segmento é a Doxa, ou seja, a opinião vulgar, desprovida de qualquer fundamento lógico ou racional e baseada na mera suposição.
O segundo segmento, da Reta Opinião ou Opinião Verdadeira, caracteriza-se pelo embasamento de nossa opinião na opinião daqueles que realmente sabem, os sábios. A passagem da Opinião para a Reta Opinião é simples e básica, porém demanda que se incorpore uma das máximas de Sócrates: “Só sei que nada sei”. Devemos admitir que na verdade não sabemos muitas coisas, pois, como coloca Platão, estamos iludidos pelas sombras da caverna. A partir do momento que admitimos que não sabemos, buscamos o auxílio de quem tem conhecimento sobre determinada coisa. Cabe aqui o bom senso de admitir que aqueles que já tiveram experiências fora da caverna, ou mesmo já saíram dela definitivamente, são os mais indicados para nos mostrar o caminho para alcançar esse objetivo.
A Reta Opinião é o que permite desenvolver nossas capacidades latentes, as quais possibilitarão que tenhamos contato com o mundo inteligível e passemos a ter graus de conhecimento. Para Platão, a Reta Opinião já é capaz de dirigir corretamente a ação. Afirma no diálogo Menon que quando houver uma reta opinião, sempre haverá êxito.
É natural que, no momento em que somos apresentados a essa teoria, surja uma indagação sobre como reconhecer os sábios, aqueles em quem podemos depositar nossa confiança de que estão indicando o caminho correto. Na verdade, isso é bem mais fácil do que parece. O ser humano traz consigo um elemento inato, uma forma de inteligência básica que lhe permite reconhecer os sábios e sua tradição: o bom senso. No momento em que tomamos contato com uma obra desse nível, reconhecemos a grandeza e a sabedoria de quem a escreveu. Não há, por exemplo, como não se render a Marco Aurélio quando tomamos contato com sua obra “Meditações”. Outro elemento que identifica os sábios é o exemplo concreto que sempre deram em relação ao que propunham. Os sábios são aqueles que não só disseram coisas, mas que também as exemplificaram através dos atos que deixaram ao longo de suas vidas. Outra dica importante é que entre os sábios não há discrepâncias. Eles sempre nos falam da mesma verdade nas diferentes épocas e culturas em que estiveram presentes.
Voltando a Platão, os dois primeiros segmentos não são conhecimento, já que são caracterizados por nossa presença na caverna. Considera-se como conhecimento apenas a partir do momento em que as experiências são realizadas no mundo inteligível.
Tendo desenvolvido as faculdades que antes estavam apenas latentes, o ser humano começa a ver as coisas iluminadas pela luz que vem de fora da caverna e não mais as suas sombras. Este é o terceiro segmento, o do Conhecimento. Por fim, o quarto segmento, o da Sabedoria, implica em ver a luz que ilumina as coisas, o que finalmente permite que elas sejam realmente conhecidas. Assim, a Sabedoria estaria fora da caverna.
É possível encontrar nas obras de Platão uma série de especificações dos segmentos apresentados, o que permite que tenhamos uma noção mais aprofundada do que trata cada um deles. Tomando como exemplo uma passagem de “A República”, Platão propõe a correspondência entre o que ele conceitua como “Operações da Alma” e os quatro segmentos apresentados:
“Pega agora nas quatro operações da alma e aplica-as aos quatro segmentos: no mais elevado, a inteligência, no segundo, o entendimento; ao terceiro entrega a fé, e ao último a suposição, e coloca-os por ordem, atribuindo-lhes o mesmo grau de clareza que os seus respectivos objetos têm de verdade”. (PLATÃO, 2002, p. 209)
Portanto, a Opinião se baseia em nossa capacidade de suposição; a Reta Opinião, no desenvolvimento da fé filosófica apoiada no estudo comparado das tradições e culturas da humanidade; o Conhecimento, no real entendimento (assimilação e integração) do que foi estudado e testado; a Sabedoria, no desenvolvimento da inteligência, que, como pode ser percebido, é um conceito muito mais sofisticado do que comumente entendemos.
As experiências fora da caverna permitirão por fim conhecer as essências das coisas, tomar contato com o mundo inteligível. É possível relacionar esse mundo inteligível com a doutrina de Pitágoras, que apresentou a seqüência completa da manifestação, tanto no mundo sensível quanto no inteligível, através da simbologia dos números e das formas. Outro trabalho que chancela o que Platão apresenta é a Teoria do Conhecimento de Sankaracharya. Além de ser possível identificar elementos básicos comuns nas duas doutrinas, a teoria de Sankaracharya contribui com a de Platão, pois é dedicada a apresentar o método, o caminho para se alcançar e transitar no mundo inteligível. Apesar dos focos diferenciados, todas essas doutrinas apresentam o caminho das maiores riquezas que podem alcançar os seres humanos.
Para nossa cultura atual, a importância de tudo isso se concentra no segmento do conhecimento que Platão conceitua como “Reta Opinião”. É a forma que temos de nos aproximar da verdade. Através da ajuda daqueles que já saíram da caverna, podemos nos orientar e a partir daí, constatar, por nós mesmos, a validade do que dizem os sábios. Não somente por nossa curiosidade em descobrir se o que falam realmente é verdade, mas por uma necessidade indispensável de que só alcançaremos o verdadeiro conhecimento pela conquista de cada um.
Bibliografia
PLATÃO. Fédon, trad. de J. Paleikat e J. C. Costa. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
______. Teeteto. Belém: Editora Universitária, 2001.
______. A República. São Paulo: Martin Claret, 2002.