Maimónides e sua época

O que não passa pelo coração não te pertence.

No mês de setembro comemorou-se o oitavo centenário da morte de Maimónides, famoso filósofo, cientista e médico judeu-espanhol. O sábio deixou marcas de seu talento no direito, na matemática, na astronomia, na filosofia e na medicina.

Um total de 40 (quarenta) conferências e comunicações, apresentadas no Congresso, abordou a figura de Maimónides por meio de estudos de especialistas procedentes de diversas universidades do Reino Unido, Israel, Estados Unidos e Espanha entre outros países.

Sua visão holística da medicina e sua dedicação ao paciente como uma pessoa, e não como um órgão adoecido, mostra-nos um profundo humanismo e indiscutivelmente faz com que ele seja o precursor da medicina natural e preventiva.

Sua crença na imortalidade da alma, sua idéia de Deus (um deus que não se personifica, que não é corpóreo), seu conceito de ética universal como elemento de sustentação da saúde espiritual da sociedade, proporciona-nos um ensinamento atemporal muito útil em nossos dias quando os valores humanos por um lado estão em baixa e por outro há uma excessiva especialização do conhecimento, o que desvinculou o homem da natureza da qual faz parte.

Para aprofundar este pensamento do filósofo cordobês, Esfinge entrevistou Dom Santiago Garcia Jalóm, Secretário-Geral e Técnico deste Congresso e Catedrático de Hebreu da Pontifícia Universidade de Salamanca.

– Você poderia falar das correntes fundamentais que apresentou Maimónides, ou seja, o racionalismo neoplatônico e o aristotélico?

Na realidade Maimónides se encontra numa dupla confrontação epistemológica do conhecimento, a questão do ser; ele se inclina sem dúvida para o aristotelismo, mas segue alguns aspectos do platonismo, pois não apresenta a visão mecânica do pensamento aristotélico. Isso vai se integrar a uma via de conhecimento que ao final chegará em São Tomás, que funde essas duas correntes em seu pensamento.

-Qual é a diferença fundamental que Maimónides estabelece entre a filosofia e a religião?

O esforço de Maimónides é a fundamentação racional da religião na fixação da ética e dos preceitos morais. O professor Puig dizia que a diferença entre Maimónides e Avicena é que este havia buscado a razão e aquele conseguiu integrar a razão dentro dos ensinamentos religiosos.

-Já que nos falou de ética, que é ética para este pensador e a discrepância com seu filho Abraham?

Basicamente o que Maimónides tenta propor é uma ética de validade universal, não só para judeus, mas para todos, justamente por esse esforço de aspecto racional ou de questões que devem ser válidas para uma vida feliz, que é o que se pretende com a ética. Após Maimónides se produzem diversas reações antimaimonidianas, acusando-o de seguir tanto o pensamento platônico como o aristotélico e que havia desvirtuado a pureza religiosa do judaísmo. Tanto é que nos séculos XII e XIV acontece uma reviravolta no judaísmo e ocorre um desenvolvimento maior da cabala e do misticismo.

-Podemos falar sobre o que é caminho de ouro, da ciência e da prudência para Maimónides.

Maimónides em sua obra trata de unir a reflexão puramente teórica, filosófica, ética, com a prática científica e com a vida virtuosa. Essa coerência de pensamento ele aplicava a si mesmo, certamente este é o caminho de ouro.

-Se Maimónides vivesse hoje, ele que buscava o pensamento integral da pessoa, o que pensaria sobre a especialização que dividiu o conhecimento em nossa sociedade?

Esse é sem dúvida um dos dramas de nossa cultura, esta fragmentação de todos os saberes. Frente a isso figuras como Maimónides constituem um desafio, pois é um teólogo, um jurista, um filósofo, um doutor, ou seja, um tipo de pessoa rara.

Não é que não nos interessamos pelo conhecimento total, é que não temos essa capacidade. Também é verdade que a quantidade de informações que recebemos é enorme, e que é uma informação superficial, pois não é um discurso elaborado, ou seja, como no exemplo de lermos um jornal e nos depararmos com informações que não são úteis.

O que é lógica para Maimónides?

A lógica é o instrumento da razão para conectar objetivamente o conhecimento. Por outro lado é o instrumento, não a razão. Por outro tem uma função comunicativa, de diálogo, mas nem tudo que é lógico é racional, e só o que é lógico pode comunicar-se com a parte da racionalidade.

Maimónides falava sobre os profetas e as profecias. O que é um profeta para Maimónides?

Este é um tema difícil, ontem houve uma palestra em Lucena sobre o conceito de profecia de Maimónides. Ele dizia que por um lado o profeta é quem tem uma comunicação especial com Deus e, por outro, é quem tem uma inteligência especial para analisar o presente e falar sobre as coisas futuras. Este último é o profeta na concepção que conhecemos, aquele que sabe o que vai acontecer. Na verdade, o profeta é a fusão desses dois conceitos, comunicação com Deus e capacidade de prever o futuro.

Qual é o significado da palavra coração no Torah ou lei escrita?

O coração é a sede mais íntima do homem, aquilo que o homem nem se quer sabe que possui, embora saiba que é seu. O que não passa pelo coração não te pertence. Mas, uma vez que tenha passado pelo coração, já não te pertence; até que não tenham chegado ao coração as coisas não são próprias.

Que utilidade pode ter os ensinamentos de Mamónides para o homem de hoje?

Eu creio que o essencial dos grandes pensadores da Antiguidade é que os problemas que eles questionavam são os que nós questionamos ainda hoje, mesmo que em circunstâncias e por razões diferentes.

– Para finalizar, apesar de a pergunta conter a resposta, a filosofia é um caminho em direção a Deus?

Sim a filosofia é um caminho em direção a Deus, uma vez que Deus é amor à sabedoria, além do mais é um caminho em direção à fé.

Antonio Manuel Cantos Prats.

Correspondente da Esfinge em Córdoba – Espanha