
Este artigo foi escrito no ano 1984 e o autor usa o termo "homem" no sentido genérico, como "humanidade" ou grupo de seres humanos.
– Qual é a sua ideia sobre o indivíduo, a sociedade e o Estado?
Vou acompanhar as ideias de Platão, com as quais concordo em linhas gerais. Para Platão, o indivíduo é o ser humano, o que hoje a psicologia entenderia como “pessoa”. Os antigos identificavam a palavra “pessoa” com sua raiz latina “máscara”, ou seja, o exterior, o que se mostra, não o interior. A moderna psicologia, em troca, chama persona àquilo mais interior que nos diferencia uns dos outros. Platão afirma que o indivíduo é a parte interior e indivisa de cada um de nós. Assim, o indivíduo é a chispa de vontade, a parte de realidade e de Deus que levamos dentro de nós mesmos. Não há duas pessoas iguais; não há dois indivíduos iguais. Para Platão, o grande êxito seria que o aspecto superior do sujeito pudesse ordenar e governar as demais partes, para criar uma harmonia natural em todo o ser.
Seguindo a Platão, a sociedade é um conjunto de indivíduos que estão harmonizados, em princípio, por seus interesses. Ou seja, que estas pessoas ou indivíduos teriam, cada um deles, uma faculdade, uma inclinação, uma habilidade mais destacada que outras. E Platão coloca o exemplo daquele que fabrica sapatos ou o que fabrica roupas. O que fabrica sapatos, se o faz apenas para si mesmo, andará bem calçado, mas não acontecerá o mesmo com os demais componentes da sociedade. Igual acontece com os demais ofícios.
Nessa sociedade começa a haver uma mudança, se começa a pensar em um interesse comum e não só no particular. Daí que o fabricante de sapatos os fabrica para todos, igualmente o fabricante de roupas e o de utensílios. Assim, todos poderiam ter os melhores sapatos, as melhores roupas e os melhores utensílios.
Isto não ocorreria se os indivíduos vivessem simplesmente uns junto a outros. Para Platão, a sociedade é uma situação transitória entre o individuo e o Estado.
A sociedade não é um momento estável das relações humanas, senão transitório, para passar à sublimação destas relações, que é a constituição do Estado. Porque Platão afirma que assim como no âmbito material alguns podem fazer melhores sapatos que outros, roupas melhores ou veículos melhores, também na esfera moral ou espiritual, no intangível e metafísico, alguns teriam possibilidades que outros não tem. Haveria alguém que poderia ser mais justo que os demais com referência às circunstancias que lhe rodeiam e nos casos que se lhe apresentassem. E seria também egoísta que esse homem, extremamente justo, retivesse essa justiça para si, o bom seria que a sociedade o aproveitasse em benefício de todos, em nome de todos, e que este indivíduo não fosse somente um elemento auto consultivo, senão que lhe pudessem consultar todos os seus membros. Esse indivíduo se converteria em juiz. A sociedade lhe outorgaria a possibilidade de julgar, em reconhecimento de sua justiça. E assim, de igual modo, com todos os demais valores espirituais.
Aquele que estivesse mais próximo de Deus, poderia de alguma forma fazer participar aos demais desse especial estado de graça. Seria sacerdote para todos. E o mesmo em todas as demais funções de governo e condução da sociedade.
Uma sociedade correta e harmonicamente conduzida por seus melhores homens, por seus melhores componentes, por aqueles que estão mais próximos da realidade, seria, para Platão, um Estado.
– Quando você fala de um novo indivíduo, uma nova sociedade e um novo Estado, se refere para o momento presente, a elaborar algo totalmente novo ou a retomar esquemas do passado, platônicos neste caso, para trazê-los ao momento atual?
Sabemos que, filosoficamente, nada é totalmente novo. Todas as coisas, de alguma forma e maneira, existiram alguma vez. É obvio que há diferenças entre uma biga romana e qualquer carro que possa circular hoje por nossas ruas, mas no fundo é um veículo similar. Não há nada absolutamente novo.
O que propomos é um regresso, uma volta, e regressar nem sempre é mau, sobretudo, quando se está em caminhos equivocados. É um regresso àquele protótipo platônico de Estado; uma aproximação, dentro de nossas capacidades humanas, àquele arquétipo de Estado, não uma evolução das estruturas atuais.
Em meu critério, as estruturas sociopolíticas atuais têm chegado a tudo o que poderiam dar. Nada evolui eternamente, senão que o faz até um ponto de onde não pode passar.
O carro pode evoluir e passar de ter dois cavalos a quatro, a vinte, pode ser leve ou ter as rodas de uma liga especial, mas esse carro de tração animal não pode transformar-se em outro carro ou em um avião; tem seu limite, em breve terá que abrir espaço a outra forma superior com uma capacidade diferente.
O balão pode ter inspirado os aviões modernos, mas em nenhum caso se pode pensar que estes sejam uma evolução daquele. O novo Estado poderia ter sua origem nestes antigos princípios filosóficos e metafísicos platônicos, mas não seria uma evolução, não teria contatos diretos consecutivos com as formas que nós conhecemos na atualidade enquanto sociedade e Estado. Não seria uma evolução do atual, senão algo que já se apresentou como arquétipo e de alguma forma existiu faz milhares de anos, mas não existe na atualidade. Por isso, para as pessoas seria completamente novo, seus efeitos também seriam e também seriam novos os seus perigos. O mesmo ocorreria com suas conquistas.
– Você fala de renovação, ainda que seja considerando velhos ideais que podem atualizar-se. Isso não parece catastrófico, já que falar de renovação nos faz entender que o atual não serve? Nem todos o veem tão mal… Qual é a sua posição a respeito? Como vê o Estado, a sociedade e o indivíduo, para falar de uma renovação?
Em geral, os seres humanos sempre veem as coisas de diferentes maneiras. Todas as coisas tem vários aspectos. Eu não pretendo unificar critérios; pretendo unicamente aportar critérios novos.
Muitos de nós temos sido vítimas desta espécie de pseudocomunismo espiritual, no qual se pensa que todos os seres humanos precisam ter o mesmo critério, que todas as pessoas tem que gostar das mesmas coisas, e que aqueles que não gostam do que eu gosto, são meus inimigos, ou que aqueles que não veem as coisas como eu vejo, são seres desprezíveis. Não se pode chegar à isso. Isso tem levado a enfrentamentos que hoje existem no mundo em todas as escalas.
E quanto a que isso possa soar catastrófico, e sei que muitas pessoas pensam que nossas posições filosóficas são, às vezes, catastróficas, temos que dizer que não é assim. Quando se corta o cordão umbilical entre a criança e a mãe, não é uma catástrofe, senão que se produz o nascimento de um novo ser. Mas, para que esse novo ser possa viver realmente por si, de forma individual, e chegar a ser por sua vez um homem ou uma mulher, há que cortar essa conexão que serviu por um tempo, mas que já não serve mais.
As estruturas que hoje estamos vivendo puderam ser úteis e válidas em um tempo, mas hoje já não o são.
Quando Ford instalou as primeiras linhas de montagem industriais em grande escala, estas foram um grande benefício para muitas pessoas. Tanto é assim, que os primeiros automóveis que dali saíram, diminuíram até dez vezes os seus preços; muitos puderam comprar carros e milhares de trabalhadores obtiveram trabalho. Mas hoje, as linhas de montagem automatizadas e os robôs, que estão substituindo milhares de trabalhadores, não tem vantagens, porque estes ficam sem trabalho e os automóveis não baixam o preço, senão que aumentam.
Na época de Ford, esse sistema mecanizado de montagem rendia e era bom, mas hoje, não serve. Hoje, esse sistema fracassa, porque nem dá trabalho a quem precisa, nem torna as mercadorias mais baratas.
– Em caso de renovação indispensável e não catastrófica, quais são os erros fundamentais que no homem, na sociedade e no Estado, motivariam esta mudança?
Não podemos pensar sequer em nos aproximarmos de todos, já que não existem uma, duas ou três causas, senão que tudo isto é o resultado de milhares de causas que vem se acumulando historicamente.
Não podemos pensar que o que está acontecendo hoje, tem sido gestado em dez anos, nem em um século, senão que vem de muito tempo atrás, e as causas são múltiplas.
Para tratar de clarificar um pouco, no exemplo do indivíduo, a primeira causa que leva ao erro é o desconcerto do próprio indivíduo, que carece de conhecimentos sobre si mesmo, e quando não se conhece algo, não se sabe manejar. O homem que não sabe é como o homem que não vê; tropeça em tudo. Ao não se conhecer, tropeça consigo mesmo, porque não conhece sua própria constituição interna, porque não sabe até onde é o seu corpo que lhe está reclamando algo, até onde é a sua parte psicológica, até onde é a sua parte mental e até onde é a sua parte espiritual.
Ao não se conhecer, comete erros, injustiças e maldades, ainda que sem querer, sendo vítima de sua própria ignorância, se desespera e se angustia pela morte e a velhice, já que não tem conhecimento real dos processos de nascimento e morte.
O indivíduo, na atualidade, está totalmente despojado de ajuda real, entendendo por esta, a ajuda espiritual e psicológica que nos permite a felicidade. E a felicidade não é tão somente uma aposentadoria ou um seguro-desemprego, senão que é também saber o que fazer com essa aposentadoria e esse seguro e é conhecer aquelas outras coisas que podem nos dar a felicidade real.
Isto seria enquanto ao indivíduo: desconcerto e falta de conhecimento de si mesmo. Considerando que a sociedade, de acordo com os esquemas clássicos, seria uma soma de indivíduos, padeceria do mesmo processo. Hoje a sociedade está completamente desconcertada. Entre o produtor e o consumidor há uma longa corrente de intermediários. Certo número de intermediários pode ser imprescindível, já que dadas as atuais condições sociais não podemos pretender que aquele que produz e o que consome estejam sempre em contato direto, mas não na quantidade atual.
Estes intermediários existem, em parte, porque não tem trabalho, porque não podem fazer outra coisa, mas também existem em grande parte por este desconcerto coletivo. A sociedade, em seus intercâmbios, está também tocada por uma série de interesses criados. O sistema de oferta e demanda baseia-se no egoísmo, uma vez que um item não possui um valor por si, mas vale mais ou menos dependendo do número de itens similares disponíveis e da demanda que há pelos mesmos. Por isso surge o desconcerto. E o desconcerto coletivo é o obstáculo da nossa sociedade atual. Tendo também promovido uma especialização excessiva e convertido essas especializações em formas tribais, como o são em geral os sindicatos e as associações similares, nas quais as pessoas se reúnem para se autodefenderem das outras, se fragmenta o espírito fundamental da unidade que nos levaria ao Estado.
Portanto, não acredito que atualmente estejamos vivendo dentro de esquemas do que é um Estado na forma platônica. Simplesmente vivemos em sociedades que não atingem o nível de Estado, porque não existem valores permanentes e superiores. Há coisas que mudam radicalmente no espaço de alguns anos e podem haver pessoas que, saindo da inércia, se perguntem sobre o que é válido, se o anterior ou o posterior à sua geração. Estamos em uma sociedade que, para alcançar a felicidade de um grupo, cria a infelicidade de outro indivíduo ou de outro grupo, e assim nos encontramos diante de uma sistemática social, mas não de um Estado, uma vez que não caminha para uma situação de justiça. A justiça atual muda com os ventos políticos e com os interesses econômicos e sociais. E o que era proibido há dez anos, hoje é legal e vice-versa. Para um observador histórico, isso cria uma incógnita: o que será permitido e proibido dentro de dez anos? E os mais novos devem sentir um grande interesse, pois devem se perguntar sobre o mundo em que viverão.
Diante dessa soma de desconcertos, e segundo meus critérios, não temos alcançado o nível de Estado.
– Em síntese, e uma vez levantados os problemas, poderia sugerir algumas soluções ou abordagens em termos de educação, ciência, arte, economia ou trabalho que nos permitiriam chegar ao nível de Estado?
Penso que, ao contrário do que se pensava e se fez nas últimas décadas, não precisamos buscar sistemas para salvar o todo. Esses sistemas, em geral, têm fracassado. Em nome da liberdade, se tem chegado a ficar sem liberdade. Em nome da riqueza dos povos, se tem chegado a empobrecê-los. Em nome da dignidade humana, descobrimos que geralmente o ser humano carece de dignidade. Em nome de todo o bom, temos chegado a quase todo o mal. Em um caminho fechado, quando não se pode seguir, é melhor seguir outro caminho totalmente diferente. Em vez de partir de sistemas, de coisas escritas que depois se aplicam à marteladas às pessoas, é melhor partir do indivíduo com uma forma pedagógica, reconstruindo-o. Se queremos fazer uma parede sólida, precisaremos, em primeiro lugar, de bons tijolos. Para fazer uma nova sociedade, novos indivíduos são necessários. Para criar uma boa sociedade que chegue a ser um Estado, são necessários novos seres humanos que tenham características completamente diferentes e superiores às que concebemos hoje. Fundamentalmente, é preciso um ser humano que conheça a si mesmo, um ser humano que não tema a vida ou a morte, que saiba basicamente como está constituído, não só por fora mas também por dentro, pois isso o tornará responsável por seus atos, porque quando se equivoque poderá ele mesmo retornar ao bom caminho ou não, mas será uma pessoa responsável e não uma pessoa arrastada pelas circunstâncias. Será um ser humano com vontade própria, que não lhe importarão as adversidades externas porque será capaz de superá-las.
É necessária também uma renovação completa da sociedade, que conduza a uma real reaproximação entre as fontes de produção e as fontes de consumo.
Devido às características de superpopulação e os problemas referentes à energia que encontramos na atualidade, não somente quanto à sua obtenção, mas também quanto aos meios de distribuição ou de estrutura dessa energia, é necessário regressar ao campo, sem por isso deixar a indústria. A Comunidade Econômica Europeia jogou, faz pouco, muitas toneladas de leite em pó no Mar do Norte, enquanto milhões de pessoas morrem de fome no norte da África. Esta não é uma Humanidade realmente boa e livre. É uma Humanidade egoísta, deformada, assassina e antropófaga, que se alimenta de outros homens. É uma Humanidade que para dar felicidade por um lado, cria morte e destruição por outro.
Temos que entender que, embora a guerra sempre tenha existido, já que é algo inerente à Natureza e não uma invenção do homem, devemos acabar com as eternas guerrilhas que estão sangrando o mundo. E não existem apenas guerrilhas, mas também sabotagens econômicas e psicológicas.
Temos que superar e voltar a gestar uma nova ciência que não seja uma ameaça, senão algo realmente útil à serviço do homem.
É paradoxal que, enquanto em nome da paz se estão paralisando as centrais atômicas em todo o mundo, há cada vez mais projéteis atômicos na Terra. Mas estamos tão acostumados a ver isso nos meios de comunicação, que se torna algo natural para nós.
É preciso também mudar o conceito de classes humanas, que nada mais é do que uma forma de racismo que, ao invés de ser baseado na cor da pele ou no local de nascimento, se baseia em elementos laborais ou econômicos. Em uma nova sociedade que pode conduzir a um novo Estado, não devem existir classes sociais, mas somente homens e mulheres livres que não se enfrentam entre si, senão que enfrentam a adversidade, a miséria, o medo e a ignorância, que são os verdadeiros inimigos.
Nesse novo mundo, aquele que queira ter o direito moral de comer deverá trabalhar, deverá produzir de alguma forma. Todos deverão produzir, caso contrário, isso levaria a uma inflação total, na qual sempre se gastaria mais do que se obtém, o que é sempre fonte de novas angústias.
E assim será possível chegar a um novo Estado, um sistema de justiça onde os mais sábios, os que estão mais próximos de Deus, possam nos beneficiar a todos. Porque também temos caído em algo que, embora está muito na moda, não deixa de ser uma negação filosófica: é o expressar uma opinião sobre tudo, o acreditar que todos sabemos tudo e o decidir por maioria. Estamos um pouco loucos e essa insanidade está nos arrastando para uma miséria coletiva. As coisas tem que ser mudadas na raiz, não no papel, mas no coração humano. Portanto, não acreditamos que as coisas possam mudar com a violência, somos contra a violência, mas que devam ser mudadas com educação, pelo exemplo, ou seja, formando novos homens que possam criar esse novo mundo.
Referência do artigo: Resumo da conferência-entrevista realizada por Delia Steinberg Guzmán com o Prof. Jorge Ángel Livraga, em 30 de junho de 1984 na sede da Nova Acrópole, Gran Vía 22, Madri - Espanha.
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