O cárcere do tempo – Delia Steinberg Guzmán

Por meio dessas palavras tentaremos ver o que é o tempo e porque nos aprisiona. O que podemos fazer para não estar sempre atados a um amo duro e cruel que costuma se manifestar, em muitos casos, sob uma aparência pequena e inofensiva, como os relógios que usamos.

Quando falamos das grandes coordenadas que regem o homem, e o situam dentro da existência, mencionamos o “tempo” e o “espaço”. Nos desenvolvemos em que espaço? Quanto tempo poderemos durar? O nosso espaço e o nosso tempo, se bem que sejam duas grandes coordenadas, tornaram-se pequenos e esquecemos que também se manifestam, embora com formas um pouco mais variadas, em outras dimensões, em outros planos, em outras formas de ser que o homem também possui.

Se, como afirmavam os antigos – e inclusive se sustentou ao longo da Idade Média, e como muitos filósofos ainda afirmam – o homem é algo mais do que matéria, se no homem existem outras formas de expressão, outras dimensões, o tempo e o espaço irão adaptar-se logicamente a essas outras dimensões.

O tempo será exatamente igual para o corpo, para a psique, para a mente e para a alma? Evidentemente, não. Essas coordenadas tornam-se diferentes quando entram noutro plano de manifestação. Tornam-se mais plásticas, o espaço tem outra forma de se expressar, o tempo tem outra duração.

Há um tempo físico que os ponteiros do relógio são capazes de medir; há um tempo mental que serve para aprendermos determinadas coisas, mais ou menos longo, de acordo com o que vamos aprender; e há um tempo espiritual, que podemos relacionar com a evolução, verdadeiramente longo. Nesse sentido, às vezes caminhamos como a mais pesada das tartarugas, se é que nos movemos.

“Façamos as grandes perguntas que os antigos fizeram: o tempo existe, o tempo é algo que corre? Ou quem corre e se move somos nós, e o tempo é simplesmente estático e deixa-se atravessar pelos nossos corpos, pela nossa mente, por nós, como seres espirituais?”

Se fôssemos seres integrais, poderíamos aproveitar todas as formas de tempo. Saber quais são as horas que valem para a nossa parte material e quais as que valem para os nossos princípios mais sutis. Assim, teríamos uma série de capacidades de expressão que iriam se ampliando, visto que, paradoxalmente, quanto mais sutil é a expressão do homem, mais amplo torna-se esse tempo.

O tempo psicológico, o tempo mental e o tempo espiritual têm uma plasticidade que o tempo físico não tem. Por isso que o tempo físico pode apresentar-se diante nós como uma prisão, com barras duras e rígidas que nos mantêm aprisionados, até nos fazer sentir que estamos submersos numa armadilha, sem poder fazer absolutamente nada.

O perigo que o não domínio do tempo implica é que podemos chegar ao final da vida com uma pergunta terrível: o que fiz da minha vida? Onde estão os meus anos? O que consegui guardar?

Apenas uma corrida para diante, apenas uma tentativa de mover as barras do tempo e, no entanto, a incapacidade, a impossibilidade de conceber algo que vá além da matéria obriga-nos a estar encerrados num diminuto relógio.

Por que o homem se encarcera no tempo? Há vários fatores que nos arrastam para isso. Por exemplo, a incapacidade de conceber alguma outra coisa. A quem ocorre pensar que o tempo mental é diferente?

Além disso, existe uma força difícil de vencer na ignorância massificante humana. Quando todos fazem algo, parece que devemos fazê-lo também. Se todos se deixam ser pegos pelo tempo, pelo visto, devemos nos deixar apanhar por ele igualmente, e ser seus prisioneiros.

Existe outro fator: a comodidade. O tempo, a medição, a rigidez, a hora de 60 minutos, o dia de 24 horas nos dão certa segurança, certo domínio, como se pudéssemos controlar com números, com limitações ou com dimensões que nos tranquilizam. Porque se saltamos para outra dimensão, carecemos de medidas, nos sentimos inseguros e imediatamente retornamos à nossa prisão como felizes prisioneiros.

E necessário começar a desejar sair dessa prisão para não sermos prisioneiros do tempo. Não há pior prisioneiro do que aquele que se sente à vontade, cômodo, dentro da sua prisão.

Isso não é nada novo. Em velhos livros de tradição muito antiga, é lembrado ao discípulo: “Cuidado, discípulo, se a tua alma sorri dentro do teu corpo, se canta dentro da sua crisálida de carne e matéria, se chora no seu castelo de ilusões, sabe, discípulo, que a tua alma é da terra”. E, assim, afirmamos, continuando este ensinamento: se nos sentimos à vontade dentro das barras do tempo, se somos felizes medindo minutos e horas, somos prisioneiros somente porque queremos. Porque quisemos, escolhemos um ritmo de vida, um ciclo que não obriga a fazer uma série de coisas determinadas no tempo.

Nasce uma criança e aparece o tempo, no qual é permitido brincar, porque é criança. Depois, vem o tempo em que a criança deve aprender a ler e a escrever, porque o dito “tempo”, assim indica. Quando alguma criança manifesta, fora de tempo, a possibilidade de ler ou de escrever, surpresos publicamos e lemos: “monstro falando aos oito meses; monstro escrevendo aos dois anos”. Não está no tempo; o tempo indica que há que ter uma idade determinada para ler ou escrever.

E o tempo continua a nos indicar até onde chega a próxima grade. Como continuaremos a viver? Quais são os jogos que já não se pode jogar? Quais são as ilusões que já não se pode ter? Quais são os sonhos que não se pode sustentar, porque já não são de crianças?

Quando o tempo passa e se tem 14, 15, 16 anos, já não se pode ser inocente, porque claro, a pessoa “já entra na vida”. Já não se pode sonhar; a poesia deve mudar, já não se observa mais os pássaros, o sol e a lua são adornos no céu.

Mais adiante, sabemos que é preciso preparar uma carreira, isso é fundamental. Para valer, é preciso ter uma carreira.

Resultado: três dias após o exame final e com um flamejante diploma pendurado na nossa parede, fazem-nos uma pergunta e vamos logo consultar os nossos livros.

Isso acontece porque não se aprendeu verdadeiramente. Foi uma das tantas imposições do tempo. Como essas outras imposições que dizem que é preciso se casar, coisa que está perfeitamente bem sempre e quando não é imposta pelo tempo, e seja uma decisão natural de duas pessoas que o querem fazer, mas não porque tenham cumprido a idade “própria” para isso.

O slogan mais corrente é dizer a uma pobre menina, amargurando-a para sempre: “Filha, você já tem 25 anos, quando é que te vai se casar, já é tempo, não é verdade?” E claro, a pobre sente que os seus 25 anos são uma tonelada que leva às costas e como ainda não se casou será marcada para sempre, porque não entrou na roda do tempo, na coisa assinalada.

Quando já se casam e o filho não nasce mais ou menos depressa, outra pergunta aparece: “Meus filhos, já têm três anos de casados, e os filhos?” Esse pobre casal sente-se afundar debaixo de um enorme peso, porque às vezes não pode dar a razão pela qual ainda não vieram, ou não se atreve a dizer que é assim porque não pode ou porque não quer. “O tempo” indica que há um ciclo e é necessário, forçosamente necessário, cumprir com o ciclo e beijar as barras uma a uma, tal como estão distribuídas.

Isso para não falar das barras mais tristes, aquelas que vêm depois, quando somos velhos e essa palavra significa que não podemos fazer nada. Velho significa triste, amargado, só, afastado, e é preciso cumprir com o ritual do tempo. Não se pode rir, não se pode brincar, não se pode sonhar, não se pode vestir de forma colorida, não se pode buscar nada novo. Por quê? Porque o tempo indica que somos velhos.

Mas esse é um ciclo que nos devora a vida. É um grande ciclo que se reverte no pequeno ciclo de todos os dias, que nos devora todas as horas, pois já estão pré-fixadas. Horas pré-fixas para se levantar, para se vestir, para se lavar, para estudar, para trabalhar, para comer, para continuar a trabalhar, para se voltar a lavar, para voltar a dormir…

Às vezes estamos no meio da hora da TV, ou da hora do jornal que se lê ou da revista que se folheia apressadamente. E continua-se a esperar o ciclo, o pequeno ciclo do dia que se reverte no Grande Ciclo, no enorme ciclo de todos os dias.

Não queremos dizer com isto que possamos escapar de certos ritmos. Alguns ritmos da vida são absolutamente necessários. Não podemos escapar deles. Não podemos nos evadir de brincar quando somos crianças, de crescer, de ter que estudar, de ter que trabalhar em algo… Isso é absolutamente natural.

Aquilo que se impõe, para não estar na prisão do tempo, é não se deixar apanhar pelo ritmo, mas senti-lo e vivê-lo como algo natural.

“Para poder viver o tempo com os seus processos naturais, deveríamos distinguir entre o que poderíamos chamar tempo ativo e tempo passivo. Chamaremos ‘tempo ativo’ o que significa evolução e crescimento. E ‘tempo passivo’ o que supõe inércia em relação a tais valores.”

O tempo ativo não é aquele que se move muito, é aquele que pode caminhar muito. Porém, às vezes, caminha-se bastante, mas muito lentamente. Lembremos as famosas estórias de fábulas de corridas entre lebres e tartarugas: ganham, geralmente, as que são lentas, porque têm a preciosa condição da continuidade, da perseverança, da persistência.

Assim, para sair dessa prisão, é preciso ter um verdadeiro desejo de fazê-lo e conseguir a possibilidade de viver um tempo verdadeiramente ativo.

Consideremos ainda outro ponto: o do tempo concebido como uma grande energia. Nós, como seres humanos, dispomos de energia e temos a capacidade de escolher onde vamos investi-la. Referindo-nos ao tempo, o inteligente é investir a energia não no que tem a aparência de muitas horas, mas no que é efetivamente duradouro ou, para empregar um termo filosófico, naquilo que tem aspecto de eternidade. Se pusermos a nossa energia no eterno e não no passageiro, o nosso tempo terá sido realmente aproveitado.

Assim, se o tempo é energia, há que o distribuir de maneira inteligente. A energia levada ao tempo aproxima-nos da eternidade, dos mistérios profundos em que as coisas não mudam jamais.

Temos ainda mais fatores para considerar além do tempo ativo, que é evolução; e o tempo energia, que é eternidade. Um fator importantíssimo é a Juventude.

O que é juventude? Juventude é sair da prisão do tempo, é colocar a nossa consciência não num corpo que está destinado a se gastar e envelhecer, mas no eterno, naquilo que é sempre, e que permite nos reconhecer e dizer: “Eu sou”. Pois há uma continuidade desde que fomos crianças, jovens, homens maduros e anciãos. O que permite nos reconhecer? Qual é esse fio que une todas as contas do colar e que vem do fundo do tempo, para se plantar no nosso presente? Ali é onde nasce a juventude sem tempo; é onde se abrem as barras da prisão…

Com esses três fatores podemos nos lançar verdadeiramente para romper aquilo que nos retém. Isso, que pode parecer quase impossível para nós, era um estudo ao qual os antigos, nas Escolas de Mistérios, dedicavam muito tempo – vale a redundância –, visto que, de alguma maneira, tinham conseguido dirigir o tempo.

Como? Por meio de uma consciência e de uma atenção contínuas e não de altos e baixos. Por que temos, tão frequentemente, a sensação de um tempo que nos sacode e nos trespassa? Porque vivemos aos saltos, porque nossa consciência fica em cada ponto somente uns instantes, pois há coisas que a distraem. E nossa atenção fica desesperada porque o tempo pesa-lhe, enquanto não consegue continuidade.

Talvez um dos segredos mais difíceis de compreender, desses grandes Sábios, tenha sido o sentido de continuidade e de uma consciência tão fixa que o tempo se tranquilizava, se estabilizava e se tornava ativo, pois a atenção podia abarcar tudo o que necessitava.

Eles aceleraram o tempo. Transformaram o futuro em presente. Aceleraram a sua evolução, a sua capacidade de conhecer, de compreender, e com essa aceleração de tempo assumiram uma dimensão de grandiosidade que nos maravilha e faz falar de grandes Seres, grandes Mestres, Iniciados.

Entre as velhas tradições que ainda se guardam – embora entrecortadas e, às vezes, até incompreensíveis – podemos encontrar referências às cerimônias que se celebravam no Velho Egito, no Caracol de Abydos. Eram cerimônias relacionadas com o Tempo.

O Caracol era o símbolo do Tempo e o homem que entrava nas suas curvas misteriosas tinha que passar por uma série de provas vinculadas ao Tempo. Ao sair, de alguma maneira, tinha que ter transcendido o sentido do Tempo.

Esse era o símbolo que se atribuía ao caracol, com sua casa nas costas, com o seu tempo de pequenas experiências sobre as costas, mas com a capacidade de levantar os olhos e as antenas acima da cabeça, do corpo, da matéria inerte e pesada.

No Velho Egito, jovens discípulos – jovens com essa juventude sem prisão e sem barreira reuniam-se nos templos para celebrar cerimônias para o Deus do Tempo, à sua capacidade de passar mais além daquilo que lhes retinha.

Hoje estamos encarcerados. Escolas de Mistérios e Iniciáticas? Não se conhecem. Possibilidades de realizar cerimônias mágicas? Poucas ou nenhuma, visto que essas coisas são consideradas “sectárias”.

Vivemos um momento histórico de aceleração dos tempos. Tudo a nossa volta se acelera. Como muitos pensadores e historiadores acreditavam, o decorrer da vida não é uma simples linha reta de evolução constante e ascendente, na qual o dia de hoje é sempre melhor do que o de ontem e o de amanhã será melhor do que o de hoje. O processo histórico ascendente não é uma linha, mas uma espiral – como o caracol dos egípcios – que ascende, mas lentamente, volta a volta, passo a passo.

Em qualquer espiral, se fizéssemos uma prova física, veríamos que há instantes de “volta” sobretudo quando estamos a ponto de mudar de direção – em que se produz uma pequena aceleração. A aceleração e o impulso que necessitamos para subir um passo mais na volta histórica que estamos dando.

A análise do que sucede em todos os níveis, ao longo da Terra, permite-nos determinar que estamos num desses momentos em que, aparentemente, e sob uma visão fria e um pouco fatalista, parece terrível.

Neste momento de aceleração, não podemos brincar no tempo passivo, ficar por trás das barras, pois, caso contrário, a História nos varrerá. Temos que brincar de estar sintonizados com a História.

Como vamos fazê-lo? Cada qual tem o seu tempo, em todos os níveis, uma possibilidade de fazê-lo. Cada qual tem no seu tempo físico uma possibilidade de contabilizar melhor os seus minutos. Cada qual tem no seu plano psicológico uma possibilidade de procurar melhores e mais depurados momentos. Cada qual tem no seu tempo mental a possibilidade de escolher os conhecimentos ou de pesquisar as leis ou conceitos que lhe permitam ampliar o âmbito da prisão estreita, na qual nos movemos. Cada qual tem espiritualmente a possibilidade de buscar-se e encontrar-se, e cumprir com aquele requisito exigido, há muito tempo, nos velhos templos: “Conhece-te a ti mesmo!”

Temos a possibilidade de alongar o tempo, a vida, e acelerar o processo de evolução. Temos a possibilidade de ser jovens. De fato, somos. Bastaria somente variar o ponto de consciência.

Dirigimos o tempo, não é o tempo que nos leva. Então, vamos gerar o milagre de sair do tempo material, das horas que nos indicam como “devemos” ser; o milagre de abrir as barras e lançar adiante a alma, que é sempre jovem.

Abrir as barreiras não significa eliminar relógios, a vida diária e o completo processo vital. Significa viver, além do tempo dos relógios, a outra vida, nas outras dimensões, nos outros tempos. E que cada dia não seja de 24, mas de infinitas horas.

Se a partir destas páginas pudesse, lançaria mãos cheias de Juventude. Mas não a juventude dos anos, não a dos rostos. Lançaria essa outra Força que nos diz: “O que importa o tempo, se eu sou, se eu estou! O que importa aquilo que as horas medem se eu estou mais além dessas horas, e venho de antes delas!”

Que  todos   nós   sejamos,  sem  prisão,  infinitamente  livres,  infinitamente  jovens, infinitamente humanos e infinitamente nós.

Crédito da Imagem:
Pintura “Saturno devorando a seu filho” de Francisco de Goya (1819-1823)