Escravo trazido da Etiópia ainda criança, chegou a ser um erudito no reino de Granada e um dos grandes humanistas da sua época.
Fátima Gordillo Santiago
Em certos momentos, a tarefa de resgatar personagens de outro tempo pode fazer com que nos deparemos com fatos extraordinários, mas outras vezes, o extraordinário não são os fatos, mas as pessoas que os realizaram. Este é o caso de uma delas, Juan de Sesa, conhecido na sua época como “o negro” Juan Latino.
O Escravo do Duque
Não existem dados que possam confirmar quando e onde nasceu, só uma referência do próprio Juan Latino em sua autobiografia relata a chegada à Espanha junto com sua mãe quando ainda era criança, vindos da distante Etiópia. Ambos chegaram ao mercado de escravos de Sevilha, onde foram comprados para a viúva do Grande Capitão, Don Gonzalo Fernández de Córdoba. Esta senhora vivia em Baena com sua filha, viúva do Duque de Sesa, e o neto, que tinha aproximadamente a mesma idade que Juan, pelo que se calcula que a data do seu nascimento deve ser entre 1528 e 1520.
Desde o princípio, a mãe de Juan foi destinada ao serviço da filha da Duquesa e o pequeno Juan designado como pajem do filho da Duquesa. Este não era seu único trabalho já que também se ocupava, entre outras coisas, da limpeza das cavalariças.
Conta uma anedota que, diante da dúvida de que os negros tivessem alma e acreditando que estariam mais expostos ao demônio que qualquer cristão branco, Juan de Sesa chegou a ser batizado cinco vezes. Parece que Juan logo se converteu, não só por obrigação, mas por afeto mútuo em companheiro de brincadeiras do seu amo, o Duque de Sesa (que também tinha o mesmo nome do seu famoso avô). De fato, Don Gonzalo se negou a receber lições se seu “amigo” de brincadeiras não fosse para a aula com ele. Assim, ante a teimosia do Duque, não houve remédio senão ceder e permitir que Juan de Sesa (já que os escravos tomavam o sobrenome dos seus amos como sinal de pertencerem a eles) assistisse às aulas. A primeira surpresa foi do professor ao comprovar como aquele escravo, negro como piche, era capaz de absorver todos os conhecimentos com assombrosa agilidade.
Juan Latino
Pouco depois a família Fernández de Córdoba mudou-se para Granada e ali encontramos algumas notícias sobre sua educação, graças a uma comédia de Jiménez de Enciso, que escreveu sobre Juan Latino por volta dos séculos XVI e XVII. Dizia Enciso que enquanto os filhos dos nobres iam estudar no colégio da Catedral, na Cúria, os escravos que eram seus acompanhantes ficavam brincando no pátio, com exceção de Juan, que entreabria um pouco a porta da sala de aula para poder escutar as dissertações do professor. Destacando assim o grande desejo de saber do “escravinho” negro.
O caso é que chegou a saber tanto latim que ficou conhecido a partir de então como Juan Latino.
Parece que também teve uma grande influência sobre seu amo e que, de uma forma tremendamente discreta, converteu-se em uma espécie de conselheiro.
O Duque inclusive o apresentou aos seus amigos e logo o talento e inteligência de Juan fizeram com que fosse muito apreciado nos círculos intelectuais e sociais do Reino de Granada e da Espanha. Ainda que evidentemente também teve detratores e inimigos.
Juan Latino realizou algumas traduções de Horácio e chegou a escrever algumas poesias muito corretas em língua latina, chamando a atenção dos seus professores.
Algum tempo depois Juan obteve licença do Duque para não realizar na casa nenhuma outra função que não fosse o estudo. Tinha inclusive uma academia na qual dava aulas particulares aos filhos dos nobres (alguns inclusive vinham de fora de Granada) e com a qual obtinha o seu próprio sustento.
Na hora de cursar estudos superiores Juan teve a intenção de fazer Medicina, mas seus protetores o aconselharam a continuar com seus estudos sobre Ciências Humanas. Chegou a dominar com perfeição não só o latim, mas também o castelhano, o grego e algumas outras matérias, obtendo uma grande formação humanista.
Um personagem muito conhecido na época em Granada era o administrador do bispo. Este, que necessitava um professor de música para sua filha, Ana de Carvajal, consultou Gregório Silvestre, organista da Catedral e ele, sem hesitar, recomendou seu amigo Juan Latino, que era um grande especialista.
Aconteceu porém que entre professor e aluna foi surgindo um afeto que se converteu em amor e, diante do assombro de muitos, a complacência de poucos e o desgosto do pai, casaram-se, depois que o amo de Juan lhe concedeu a liberdade e um dote de 2.000 ducados.
Juan Latino foi muito valorizado, tanto pelo aval de Don Gonzalo Fernández de Córdoba e outros personagens de grande peso em Granada, como por suas próprias capacidades. Começou a dar aulas de latim na recém fundada Universidade de Granada, formando parte de pleno direito do círculo de professores, tal como se estipulava nos estatutos de fundação da Universidade e como aparece no livro de registro dos professores. Teve alguns problemas para converter-se em professor pois não era licenciado, somente bacharel, e alguns aspirantes à vaga protestaram. Mas era tão grande o interesse que despertava “o negro” que rapidamente a Universidade preparou uma banca e o examinou, outorgando-lhe assim o grau merecido de licenciatura.
A fama de Juan Latino alcançou toda a Espanha. Pellicer fala dele nas Preliminares do Quijote, Diego Jiménez de Enciso dedicou a ele uma comédia, Rodrigo Ardilla o elogiou em um romance e o próprio Cervantes o elogia em algumas poesias do seu Quixote. Além do mais, um de seus maiores méritos está em ter formado numerosos escritores de Granada e famosos tradutores dos clássicos que logo formaram parte do Século de Ouro da Literatura.
Ele, que se autodenominava “Mestre da Juventude”, era muito respeitado entre seus colegas mas especialmente entre seus alunos, que em agradecimento ao seu magistério chegaram a dedicar-lhe algumas de suas obras.
Conheceu pessoalmente Don Juan da Áustria que, ao chegar em Granada e ser recebido pelo Duque de Sesa, comentou que havia ouvido falar da existência de um escravo negro muito famoso por seu saber, e quis conhecê-lo. Em uma ceia que deu no palácio de Carlos V e a qual assistiram personalidades da política e da sociedade espanhola, Juan Latino esteve presente e foi submetido a exame por todos eles ante a vista da corte do rei. Aquela foi uma situação complicada da qual soube sair vitorioso, pois foi capaz de responder a todas as perguntas sem dar nunca a impressão de colocar-se acima (ainda que estivesse) dos seus interlocutores. Foi uma exibição de diplomacia.
Juan Latino humanista
Não é possível considerar Juan Latino como um dos primeiros humanistas espanhóis, como frei Luis de Leon ou Luis Vives, pois sua situação não lhe permitia destacar-se, e muito menos ser um pensador. Mas depois deles, sem dúvida, tem um lugar na corrente humanista.
Tinha um conhecimento global de tudo relacionado com o saber humano. Participava assiduamente nas tertúlias onde se reunia a nata da intelectualidade de Granada. O lugar se chamava o “Salão Dourado” e era freqüentado por personagens do porte do Marquês de Mondéjar, os Granada-Benegas, Pedro Martinez de Ardilla, Hurtado de Mendoza ou Bermúdez de Pedraza.
Em Granada não há, durante o século XVI, outro poeta latino como ele. Sua obra tem um forte caráter academicista, algo carente do frescor renascentista, mas nem por isto deixa de ser excelente.
Era habitual entre os escritores e poetas da época praticar a “imitatio veterum”, ou seja imitar no estilo as formas dos grandes autores antigos, tais como Virgílio e Homero. Os humanistas se sentiam seus devedores e consideravam uma honra ser capaz de imitá-los. Juan Latino imitava com grande maestria Terencio, Horácio, Ovídio e Virgílio.
Entre suas obras destacam-se a “Austriada”, considerada por muitos estudiosos (Lopes de Toro entre outros) como uma das obras latinas mais perfeitas de nossa literatura. Escreveu esta obra em latim, em honra do herói de Lepanto, don Juan da Áustria, ainda que dando o papel mais relevante a seu meio irmão, o rei Felipe II. Seria tremendamente comprometedor para Don Juan aparecer ante a corte como alguém mais importante que o monarca. Desde cedo sua postura de manter uma posição muito discreta, apesar de suas tremendas capacidades, foi em alguns momentos muito duro para ele.
Também escreveu Epigramas, uma série de poemas em comemoração do nascimento do príncipe Fernando, considerado a “esperança” do reino. Estes epigramas foram expostos, para leitura e conhecimento público, na praça da cidade.
Posteriormente realizou uma biografia do Papa Pio V, com tendência claramente contrárias à reforma, e alguns poemas, como protestos (sempre discretos) pelo translado dos cadáveres reais. Juan Latino representa magistralmente Granada como uma mulher que ouve o burburinho e olha à janela pela manhã, ainda despenteada, reprovando o translado dos corpos (com exceção dos Reis Católicos, Felipe o Formoso, Joana a Louca e o suposto filho de ambos) dos reis cristãos que estavam enterrados na Capela Real até o recém construído Monastério de “El Escorial”. Precisamente Felipe II foi concebido em Granada, durante a viagem de núpcias dos seus pais Carlos I e Isabel de Portugal.
A sua obra é realmente impecável.
Uma vida dedicada principalmente à docência e a formação dos jovens nobres. Sabe-se que morreu muito velho, com mais de 80 anos, e contam alguns que a partir de Juan Latino a cor morena na pele tornou-se moda, mudando a estética das damas nobres.
Na igreja da Santa Ana de Granada está enterrado junto com sua esposa, Ana de Carvajal.
O extraordinário aqui é sem dúvida a própria pessoa de Juan Latino, “o negro”, mestre da juventude, antes Juan de Sesa, escravo do Duque, trazido da Etiópia com sua mãe sendo ainda muito pequeno. Talvez, se não fosse escravo e negro, poderíamos contá-lo hoje entre os grande humanistas espanhóis, possuidor da amizade e o respeito dos que souberam vê-lo além de sua raça.